A Polícia Federal abriu ontem inquérito para investigar se o presidente Jair Bolsonaro prevaricou por não ter comunicado aos órgãos de investigação indícios de corrupção nas negociações para compra da vacina indiana Covaxin pelo Ministério da Saúde.
Horas após a informação ser divulgada, o presidente negou ter cometido o crime ao afirmar que repassou a denúncia para seu então ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, tomar as providências
"Eu entendo que a prevaricação se aplica a servidor público. Não se aplicaria a mim. Mas qualquer denúncia de corrupção, eu tomo providência. Até a do Luís Lima (Luis Miranda), mesmo conhecendo toda a vida pregressa dele, a vida atual dele, eu conversei com o Pazuello", afirmou trocando o nome do deputado federal que disse ter levado a Bolsonaro as suspeitas em torno da Covaxin.
Bolsonaro narrou o eventual diálogo com seu subordinado. "Pazuello, está aqui uma denúncia do deputado Luís Lima (Miranda), que estaria algo errado acontecendo. Dá uma olhada? Ele viu e disse não ter nada de errado", afirmou. Segundo o presidente, Pazuello, que é general da ativa, apontou apenas erros que teriam sido corrigidos no processo.
A investigação sobre a conduta de Bolsonaro foi autorizada pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal. O pedido partiu da Procuradoria-Geral da República a partir de uma notícia-crime oferecida pelos senadores Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Fabiano Contarato (Rede-ES) e Jorge Kajuru (Podemos-GO).
Apesar do entendimento do presidente, em seu artigo 327, o Código Penal diz que, para os efeitos da lei, são considerados funcionários públicos "quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerça cargo, emprego ou função pública". Dessa forma, portanto, ele pode responder por prevaricação.
O inquérito será tocado por dois órgãos que têm as cúpulas alinhadas ao governo. A Procuradoria-Geral da República, que tentou sem sucesso adiar a investigação, e a PF. Bolsonaro não deixou de pontuar ontem que o caso está com o "nosso" ministro da Justiça, Anderson Torres, e o "nosso" diretor-geral da PF, Paulo Maiurino, que escalou o delegado William Tito Schuman Marinho.
"Para começar o processo demora. Mas, pode ter certeza, está aberto aqui o Anderson, o nosso ministro da Justiça, o nosso Maiurino (diretor-geral da PF). Se bem que eu não mando na Polícia Federal, pessoal. E não tem como botar cabresto na PF", disse. O ex-ministro da Justiça Sérgio Moro deixou o governo em 2020 acusando Bolsonaro de tentar interferir na PF para livrar seus filhos e familiares de investigações. No caso mais recente, o delegado que investigou seu então ministro Ricardo Salles perdeu o cargo.
Covaxin
O pedido de investigação foi levado ao STF depois que o deputado Luis Miranda (DEM-DF) e o irmão do parlamentar, Luís Ricardo Fernandes Miranda, que é chefe de importação do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, afirmaram à CPI da Covid do Senado que o presidente ignorou alertas a respeito de suspeitas de corrupção no processo de aquisição do imunizante fabricado pela Bharat Biotech.
Como mostrou o Estadão, o governo comprou a Covaxin por um preço 1.000% maior do que, seis meses antes, era anunciado pela própria fabricante. Foi a vacina mais cara comprada pelo governo e a única a ter um intermediário nas negociações.
No dia 24 de junho, quase três meses depois de ter sido informado pelo deputado Luis Miranda sobre as possíveis irregularidades no processo de aquisição da vacina, o presidente ainda não havia acionado a PF para investigar o caso. O inquérito para apurar as denúncias apresentadas por Luis Miranda a Bolsonaro só foi instaurado no dia 30 de junho a mando do Ministério da Justiça.
Bolsonaro comentou ontem sobre a possibilidade de a conversa com o deputado Miranda ter sido gravada. "Se houve gravação, isso é crime. Pelo amor de Deus. É a mesma coisa: Pega cinco colegas, vamos bater um papo, a gente começa a falar um montão de abobrinhas. Fala da vida do outro, colega isso, colega aquilo. É justo alguém gravar e levar isso para frente? Agora, nada, pelo que eu me lembre, foi tratado com ele com a ênfase como ele vem dizendo."
O deputado já insinuou que se for desmentido pelo presidente vai apresentar as provas de que a conversa ocorreu. Na ocasião, Bolsonaro teria apontado seu líder do governo, deputado Ricardo Barros (PP-PR), como responsável pelos "rolos" envolvendo a compra de vacinas no Ministério da Saúde.
Barros foi ministro no governo Temer e manteve influência na pasta no atual governo. O Estadão apurou que Bolsonaro teria feito críticas nessa conversa também ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e ao senador Ciro Nogueira (PP-PI), ambos seus aliados.
Miranda também será alvo da PF, que deve apurar se cometeu crime de denunciação caluniosa.
O crime de prevaricação está previsto no artigo 319 do Código Penal, com pena de até um ano de detenção. Especialistas ouvidos pelo Estadão indicam que o presidente pode não só ter cometido crime de prevaricação, mas também de condescendência com o crime e, até mesmo, de responsabilidade, este último podendo levar à abertura de impeachment.
Juristas ouvidos pelo Estadão veem margem para que Bolsonaro seja enquadrado nos incisos V e VII da lei do impeachment, que falam, respectivamente, da probidade administrativa e do legal emprego dos recursos públicos.
No entanto, uma avaliação interna no Supremo é de que pelo fato de o crime de prevaricação ser de baixo potencial ofensivo, com penas leves, dificilmente o inquérito resulte em uma denúncia contra o presidente. Mesmo que a investigação conclua que Bolsonaro prevaricou ao não comunicar a PF após suspeitas no Ministério da Saúde, o mais provável é que seja proposto a ele um acordo de não persecução penal - neste caso, ele teria que aceitar algumas condições para que o processo seja encerrado.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.