Às portas da aposentadoria como integrante do Supremo Tribunal Federal por 31 anos, no balanço que fez da sua atuação na Corte, o ministro Marco Aurélio Mello refuta a ideia de ser um magistrado polêmico. Para ele, todo o tempo, o que prevaleceu nas decisões que tomou foi o entendimento da Constituição. Conforme disse, ontem, ao CB.Poder — realização do Correio Braziliense e da TV Brasília —, “sempre fui um juiz, nos 42 anos em colegiado julgador, atuante, de convicções próprias e, em colegiado, que é o somatório de forças distintas”.
Para o ministro, não há razão para mudanças do sistema de votação do país, por meio das urnas eletrônicas. Marco Aurélio assegura que as denúncias contra o formato que vem sendo utilizado desde a década de 1990 são inexpressivas e incapazes de lançar dúvidas razoáveis à maneira como o eleitor escolhe seus representantes. Para o magistrado, os ataques do presidente Jair Bolsonaro e a defesa do restabelecimento da impressão do voto são um “contrassenso”.
A respeito do possível sucessor na cadeira do STF — Bolsonaro anunciou ontem que pretende indicar o advogado-geral da União, André Mendonça —, Marco Aurélio considera desimportante a religião do sucessor. Para o ministro, o que importa é que tenha conhecimento jurídico suficiente para ocupar uma vaga no Supremo, que, como faz questão de registrar, é de alta “envergadura”.
O senhor foi um campeão de decisões polêmicas. Soltou banqueiro Salvatore Cacciola, o traficante André do Rap, o goleiro Bruno, afastou Renan Calheiros da presidência do Senado — e todos perguntavam por quê. Dessas decisões, qual considera a mais polêmica?
Nenhuma. Atuei a partir do direito posto e segundo o meu convencimento sobre os casos, e o fiz com pureza d’alma — ou seja, me concentrando apenas na legislação de regência. Evidentemente, acima de cada integrante do Supremo, está o colegiado e, havendo recurso ou sendo levada a tutela de urgência ao colegiado, cabe a ele referendar ou não a decisão proferida. É muito importante que o juiz atue com absoluta equidistância. Juiz não ocupa cadeira voltada às relações públicas. Agora, o que é ser polêmico? Segundo a definição grega, é ser atuante. Eu sempre fui um juiz, nos 42 anos em colegiado julgador, atuante, de convicções próprias e, em colegiado, que é o somatório de forças distintas, isso é muito importante — vence a maioria. Não disputo coisa alguma no colegiado, muito menos superioridade intelectual.
Em um julgamento que o senhor participou recentemente, do ex-juiz Sergio Moro, votou contra a suspeição e o colocou como herói da Lava-Jato. Como o senhor vê essa questão, agora, depois que ele foi considerado suspeito e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está solto?
Vamos esclarecer os fatos: eu não elegi o juiz Sergio Moro herói nacional. Quem o apontou como herói nacional no combate à corrupção foi a sociedade, ela que o tomou como herói nacional. E não entra na minha concepção que, do dia para a noite, passado algum tempo, ele possa ser execrado. Manifestei dentro do colegiado sobre o processo envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que acabou sendo ressuscitado politicamente — e manifestei segundo convencimento sobre a matéria. Estou muito tranquilo quanto ao que exteriorizei. Em momento algum elegi Sergio Moro herói nacional; retratei o que a imprensa vinculou e retratei, também, o sentimento da sociedade brasileira há um bom tempo.
A Lava-Jato precisa voltar? Porque o presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, diz que a corrupção acabou. Como avalia, hoje, a forma com a qual o governo está lidando com a corrupção?
A Operação Lava-Jato se vinha bem com vários condenados, com vários absolvidos. Quando o Supremo concluiu que não seria competente o juiz da 13ª Vara Criminal de Curitiba decidir, evidentemente não se tem a quem recorrer e com isso se voltou à estaca zero — ou seja, o processo será encaminhado ao juízo federal em Brasília e começará praticamente da estaca zero. A organicidade do direito, a meu ver, a dinâmica do direito que visa ter essa decisão final no processo, não foi respeitada e isso gera uma perplexidade para a sociedade. A sociedade espera segurança jurídica, uma marcha segura voltada ao término da persecução criminal do processo-crime, e não essas idas e vindas. Creio que tenho que reexaminar a minha posição, mas, por mais que reexamine, não me convence de assistir maior razão à maioria formada. Formou-se maioria e houve uma decisão, e é uma decisão definitiva do Supremo que tem que ser respeitada, já que vivemos em um estado democrático de direito e as decisões judiciais precisam ser cumpridas.
Na sua sessão de despedida, na semana passada, o senhor mencionou os dois possíveis candidatos ao STF: o advogado-geral da União, André Mendonça, e o procurador geral da República, Augusto Aras. O presidente Jair Bolsonaro deu mais uma sinalização de que indicará Mendonça. Com relação às indicações, comenta-se muito, por exemplo, que Mendonça seria um ministro que se encaixaria no perfil de ser “terrivelmente evangélico”. Não lhe incomoda esse tipo de atributo ser direcionado aos possíveis candidatos ao Supremo?
Não me incomoda como ministro Marco Aurélio, nem ao cidadão Marco Aurélio, a escolha do presidente da República. O que requer a Constituição federal é que o indicado tenha ilibada conduta e conhecimento do direito atendidos os requisitos constitucionais. Cumpre ao Senado apreciar na sabatina, inclusive, o nome escolhido pelo presidente da República. Agora, se é evangélico, se não é, não importa. O Estado é laico e a religião professada não é requisito constitucional para chegar-se ao Supremo. Vou repetir mais uma vez: a escolha é do presidente da República, Jair Bolsonaro. Escolhido o nome, é submetido ao Senado — e pouco importa que seja católico ou evangélico. Eu, por exemplo, sou católico de batismo, mas no meu lugar pode vir alguém que tenha uma outra religião.
O senhor ficou conhecido pelo seu desassombro ao julgar. Como acha que essa qualidade precisa prevalecer para seu sucessor? Por que é tão importante julgar com desassombro?
Considerada a envergadura da cadeira, nós não julgamos papéis; julgamos destinos e, se tratando do Supremo, ele tem a última palavra. Sobre os conflitos de interesse, é importante que cada qual guarde a independência. A meu ver, é a grande qualidade do juiz a equidistância, considerando o calor da discussão, considerando as emoções envolvidas.
Quando o senhor assumiu no Supremo, a Constituição de 1988 tinha apenas dois anos. Que avaliação faz da Constituição agora?
Vou repetir o que eu digo sempre: precisa ser mais amada pelos brasileiros, precisa ser mais observada pelos órgãos públicos, e é o documento maior da República, que a todos indistintamente submete. Nós tivemos a mudança, em 1988, de um regime de exceção para um essencialmente democrático. As controvérsias que vêm surgindo são solucionadas pelo Judiciário, especialmente pelo Supremo.
Que avaliação faz desse momento que o país está vivendo? O senhor deixa o Supremo em que cenário na sua avaliação?
São tempos estranhos, como eu costumo dizer. Quando imaginamos que já vimos tudo, em termos de procedimento, em termos de atos, nós nos deparamos com novo enfoque. Estamos avançando passo a passo a nossa democracia e respeitando as regras estabelecidas, observando, portanto, o estado democrático de direito. Há um sistema de freios e contrapesos; os poderes são harmônicos e independentes, mas não deixa de haver o controle pelo Judiciário, tanto que é o derradeiro poder mencionado na Constituição. O Judiciário julga os conflitos de interesse, as controvérsias, restabelecendo a paz social momentaneamente abalada. O Supremo não tem faltado à nacionalidade.
Sobre o inquérito, reaberto pelo ministro Alexandre de Moraes, a respeito dos atos antidemocráticos. Como enxerga a posição do Supremo em relação a esses atos?
O que se tem é a prestação jurisdicional, no tocante ao inquérito que está sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes. Pronunciei-me de forma contrária porque foi instaurado não por provocação da polícia ou requerimento do Ministério Público. Foi instaurado pela própria vítima, que seria o Supremo. E, mais do que isso, não se observou na escolha do relator o critério democrático por excelência, que é o da distribuição. Eu não aceitaria essa relatoria se tivesse no lugar dele.
A democracia está ameaçada no Brasil?
De forma alguma. Não há espaço para saudosismo. A democracia veio para ficar e ser robustecida a cada dia. Não percebo como se possa imaginar um retrocesso, se possa imaginar um ato, por exemplo, de força. Isso não se coaduna com o estado democrático de direito. Nossa democracia é uma democracia que a cada passo é fortalecida.
Em relação à nossa democracia, uma das discussões, hoje, é a do voto impresso. O presidente Bolsonaro disse que não aceitaria passar a faixa presidencial se não houver o voto que chama de auditável. Isso não desestabiliza?
Não há a menor dúvida de que — nós aprendemos em nossas casas desde a infância — o exemplo vem de cima. Não é interessante para as instituições pátrias que o dirigente maior do país critique um sistema que o elegeu em 2018 pela urna eletrônica. O que tínhamos no passado, antes de 1996 — e eu presidi as primeiras eleições informatizadas no Brasil? Tínhamos a cédula que era preenchida pelo eleitor e, depois da contagem dessas cédulas, o denominado mapismo. Com a urna eletrônica, não; a cabine é liberada para o eleitor e ele digita o número do candidato, e a vontade dele é a que prevalece. A urna tem um disco fixo e um disco móvel que, encerrado o certame, é recolhido para se ter o cômputo final dos votos. De 1996 para cá, não tivemos uma impugnação minimamente séria. Há um contrassenso no ar porque o presidente critica justamente o sistema que o elegeu e, portanto, foi um sistema fidedigno quanto à vontade dos eleitores. Não conversei com o presidente e, tampouco tenho expertise para colocá-lo em um divã e ouvi-lo para saber o subconsciente dele. O que posso afiançar aos brasileiros é que é um sistema sério, um sistema que visa preservar, acima de tudo, a vontade do eleitor.
O senhor fica no Supremo até o dia 12. Quais são os trabalhos que pretende concluir nesses últimos dias?
Não distingo processo. Geralmente, as pessoas não têm ideia da avalanche de processos, da carga suportada por cada um dos integrantes do Supremo. À medida que o processo fica aparelhado para apreciação, eu aprecio. Mas terminarei os meus dias com os processos que pude liberar. Os demais ficarão para o meu sucessor e que seja muito feliz na montagem do gabinete e trabalhe percebendo a envergadura da cadeira que virá a ocupar, porque a responsabilidade é enorme. Estou no serviço público há mais de 55 anos e, em colegiado julgador, há 42 anos. Só posso desejar que o presidente da República seja feliz na escolha do sucessor para que aquele escolhido assuma a cadeira. E percebendo a envergadura da cadeira, que seja melhor do que o sucedido no exercício da função de julgar.
Os partidos já entraram no Supremo para pedir que o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), coloque para caminhar os processos de impeachment contra Bolsonaro. O senhor acha que o país está preparado para mexer com isso?
O objetivo tem que ser a estabilidade; a estabilidade é que gera segurança jurídica. O presidente foi eleito com 47 milhões de votos; uma escolha, portanto, dos eleitores. Foi diplomado e tem o mandato de quatro anos a ser cumprido. Não vejo com bons olhos a crítica exacerbada e causa espécie que haja tantos pedidos de impedimento do presidente. Em uma das casas do Congresso, o ideal é que não haja nenhum pedido. Agora, cumpre ao presidente Arthur Lira dar sequência ou não a esses pedidos. Desdobramentos no Judiciário, nós precisamos aguardar um pouco. Hoje, me defrontei com uma notícia de que senadores provocaram o Supremo para ter-se a liberação desses processos. Vamos ver como decidirá o colegiado.
Nesses 31 anos no Supremo, o que faltou fazer na avaliação do senhor?
Cumpri o meu dever sempre. Devo ter errado algumas vezes, porque sou um ser humano, mas sempre busquei tornar concreta, tornar eficaz, a Constituição Federal. Foi a legislação de regência da matéria e julguei a partir das balizas processuais. Evidentemente, o Supremo não atua como legislador positivo; pode atuar como negativo se uma lei for conflitante com a Constituição Federal. Ele sempre atua, vou repetir, de forma vinculada.
* Estagiário sob a supervisão de Fabio Grecchi