O caso da suposta rachadinha que teria sido promovida pelo senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) para desviar recursos públicos em seu antigo gabinete de deputado estadual completou um ano emperrado no Supremo Tribunal Federal (STF), onde aguarda uma decisão sobre a instância judicial em que o parlamentar deve ser julgado.
O filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é acusado de ter contratado funcionários fantasmas que lhe devolviam a maior parte dos salários pagos pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Ele nega ter cometido qualquer irregularidade.
O caso emperrou depois que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) concedeu em 25 de junho do ano passado foro especial à Flávio Bolsonaro, deslocando-o de uma vara de primeira instância para o próprio TJ-RJ.
Logo após essa decisão, ações foram apresentadas ao STF tentando reverter a concessão do foro, mas esses pedidos continuam aguardando julgamento nos gabinetes dos ministros Gilmar Mendes e Kassio Nunes Marques, esse último indicado por Bolsonaro para a Corte.
Após aguardar por alguns meses se o STF decidiria sobre o foro de Flávio, o próprio TJ-RJ marcou em janeiro novo julgamento para reavaliar a questão. No entanto, Gilmar Mendes deu uma rápida decisão mandando suspender esse julgamento até que o STF defina a instância do julgamento. Depois disso, porém, manteve novamente o caso parado em seu gabinete por meses.
Nesta segunda-feira (5/7), uma série de reportagens do portal UOL revelou novas gravações de pessoas que teriam atuado como funcionários fantasmas nos antigos gabinetes do então deputado federal Jair Bolsonaro e de Flávio quando era deputado estadual, aumentando os indícios de que a prática era adotada por ambos.
Entenda a seguir as novas revelações que atingem a família presidencial e por que o caso da rachadinha emperrou no STF.
Áudios trazem confissão de funcionários fantasmas
Os áudios obtidos pelo UOL envolvem irmãos de Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Jair Bolsonaro e mãe do quarto filho do presidente, Renan Bolsonaro.
Em uma das gravações, Andrea Siqueira Valle, ex-cunhada de Bolsonaro, diz que seu irmão André foi demitido do gabinete do hoje presidente porque se recusava a devolver toda a quantia exigida pelo então deputado federal.
A reportagem informa que, após atuar por dois períodos no gabinete do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) entre 2001 e 2006, André passou a integrar a lista de funcionários do gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados em novembro de 2006, sendo demitido em outubro de 2007.
"O André deu muito problema porque ele nunca devolveu o dinheiro certo que tinha que ser devolvido, entendeu? Tinha que devolver R$ 6 mil, ele devolvia R$ 2 mil, R$ 3 mil. Foi um tempão assim até que o Jair pegou e falou: 'Chega. Pode tirar ele porque ele nunca me devolve o dinheiro certo'", teria dito Andrea na gravação, segundo o UOL.
Em outro áudio, de acordo com a reportagem, Andrea teria revelado também que devolvia a maior parte do salário recebido por ela mesma como funcionária do gabinete de Flávio Bolsonaro. "Eu ficava com R$ 1 mil e pouco e ele ficava com R$ 7 mil, então, assim, certo ou errado agora já foi, não tem jeito de voltar atrás", diz ela, que antes também foi funcionário do gabinete de Jair Bolsonaro.
Os áudios seriam de conversas ocorridas entre 2018 e 2019, segundo o UOL, que não revelou a fonte das gravações.
Desvio de dinheiro público por meio de rachadinha configura crime de peculato. A Constituição Federal impede que Bolsonaro seja investigado por eventuais crimes cometidos antes de se tornar presidente. Ele só poderá ser alvo de inquérito após deixar o cargo, caso não tenha ocorrido a prescrição dos supostos ilícitos.
Já o senador Flávio Bolsonaro não tem essa proteção, mas a investigação contra ele ficou emperrada após conseguir o foro especial.
Entenda como caso da rachadinha emperrou
As suspeitas envolvendo Flávio Bolsonaro vieram à tona no final de 2018 com a revelação de um relatório do antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) apontando movimentações vultosas de recursos por Fabrício Queiroz, que era funcionário do seu gabinete na Alerj.
Queiroz, antigo amigo de Jair Bolsonaro, é acusado pelo Ministério Público de ser o operador do esquema de rachadinha — ou seja, seria ele que gerenciava a contratação dos funcionários fantasmas, o recolhimento dos salários e o repasse desses valores ao filho do presidente.
Os promotores dizem ter levantado provas de que esse dinheiro era usado por Queiroz para pagar na boca do caixa contas da família de Flávio, como boletos do plano de saúde ou da mensalidade escolar das filhas. Além disso, afirmam que parte do recurso desviado era lavada através do investimento em imóveis e por meio de uma loja de chocolate que o senador possuía em um shopping no Rio de Janeiro.
Até junho de 2020, o caso corria na primeira instância da Justiça Estadual do Rio de Janeiro, na vara do juiz Flávio Itabaiana. Isso porque, no início de 2018, o plenário do STF decidiu restringir o foro privilegiado apenas a crimes relacionados ao atual mandato do parlamentar. Ou seja, como as acusações contra o filho do presidente são anteriores ao seu mandato de senador, o entendimento inicial é que ele não teria direito a foro especial nesse caso.
A defesa de Flávio, porém, apresentou alguns recursos questionando essa interpretação. O ministro do STF Marco Aurélio recusou em 2019 o pedido para que ele fosse julgado com foro de senador. No entanto, em junho de 2020, a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro aceitou o argumento dos advogados do filho de presidente de que ele ainda teria direito ao foro de deputado estadual (julgamento na segunda instância em vez de na primeira) porque não deixou de ter cargo eletivo (deixou de ser deputado estadual para assumir imediatamente o mandato de senador).
Poucos dias após essa decisão, em 30 de junho de 2020, o Ministério Público do Rio de Janeiro apresentou um recurso no STF questionando o foro concedido a Flávio. Esse recurso foi uma ação do tipo Reclamação, que é usada quando uma decisão judicial claramente contraria uma decisão prévia do STF (no caso a decisão de 2018 que restringiu o alcance do foro privilegiado).
Essa reclamação, que deve ser julgada pela Segunda Turma do STF, foi sorteada para o gabinete do ministro Gilmar Mendes, onde tramitou com lentidão.
Embora recursos desse tipo sejam considerados ações de análise mais simplificada, já que discutem decisões já tomadas pelo STF, Mendes preferiu não tomar qualquer decisão individual no caso e liberou a reclamação para julgamento na Segunda Turma apenas em 28 de maio deste ano, quase nove meses após seu início.
No entanto, embora ele seja o atual presidente da Segunda Turma, o ministro não pautou o julgamento da reclamação. Agora, caberá ao ministro Nunes Marques, próximo presidente do colegiado, decidir quando será o julgamento. Ele assume o comando da Segunda Turma em agosto, após o recesso de julho do STF.
A BBC News Brasil questionou na segunda-feira de manhã o ministro Gilmar Mendes sobre por que demorou alguns meses para liberar o caso e por que não pautou a reclamação para julgamento quando presidia a Segunda Turma. O ministro não se manifestou até o fechamento da reportagem. Caso haja resposta, será incluída posteriormente na reportagem.
A lentidão de Mendes para liberar o caso para julgamento contrasta com a velocidade com que o ministro deu uma decisão individual em janeiro que paralisou o andamento do caso da rachadinha no TJ-RJ.
No início de novembro do ano passado, o Ministério Público do Rio de Janeiro concluiu a investigação da rachadinha e apresentou uma denúncia criminal contra Flávio, Queiroz e mais 15 pessoas. O senador e seu antigo assessor são acusados dos crimes de organização criminosa, peculato, lavagem de dinheiro e apropriação indébita.
Até o momento, porém, o TJ-RJ não analisou se aceita ou não a denúncia. Antes disso, o tribunal fluminense aguardou o que o STF decidiria sobre o foro de Flávio.
Com a demora do Supremo, o presidente TJ-RJ, desembargador Claudio de Mello Tavares, marcou para janeiro deste ano um julgamento do Órgão Especial do Tribunal para reavaliar se o foro especial concedido ao senador deveria ser mantido. Nas vésperas do julgamento, porém, Mendes deu uma decisão liminar suspendendo sua realização até que o STF decidisse sobre o foro do filho do presidente.
Dessa forma, o caso está parado até o momento aguardando alguma decisão do Supremo.
Outra ação no gabinete de Nunes Marques
Além da reclamação sorteada para Mendes, outra ação questionando o foro de Flávio Bolsonaro está no gabinete de Nunes Marques.
Trata-se de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) apresentada pelo partido Rede Sustentabilidade em 29 de junho de 2020. Essa ação foi sorteada para o gabinete do ministro Celso de Mello, que se aposentou em novembro. Indicado por Bolsonrao para sucedê-lo, Nunes Marques herdou a relatoria do caso.
Questionado por meio da assessoria do STF, o ministro não quis responder à BBC News Brasil sobre por que ainda não levou a ADI a julgamento do plenário da Corte.
Já sobre a reclamação à espera de julgamento na Segunda Turma, Nunes Marques disse "que só saberá sobre os processos liberados para julgamento na Segunda Turma após assumir a Presidência do colegiado, o que acontecerá em agosto".
Defesa de Flávio questiona áudios
Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz negam que tenham desviado recursos do gabinete da Alerj por meio de funcionários fantasmas. A versão de Queiroz é que recolhia parte dos salários para conseguir contratar mais pessoas para atuar pelo mandato de Flávio no Estado do Rio de Janeiro. Ele nunca apresentou provas disso.
Já o hoje senador afirma que não tinha conhecimento do que seu ex-assessor fazia e nega ter sido beneficiado pelo esquema. Ele também se diz perseguido politicamente pelo Ministério Público.
Jair Bolsonaro ainda não se manifestou sobre as reportagens do UOL. Nesta segunda-feira, a defesa do filho do presidente divulgou uma nota questionando a validade dos áudios revelados pelo portal.
"Gravações clandestinas, feitas sem autorização da Justiça e nas quais é impossível identificar os interlocutores não é um expediente compatível com democracias saudáveis. A defesa, portanto, fica impedida de comentar o conteúdo desse suposto áudio apresentado pela reportagem", diz a manifestação assinada pelos advogados Luciana Pires, Rodrigo Roca e Juliana Bierrenbach.
A nota diz também que Andrea Siqueira Valle "trabalhou na Alerj e cumpria sua jornada dentro das regras definidas pela assembleia".
"Flávio Bolsonaro, nas suas atividades parlamentares, não tinha como função fiscalizar e orientar a forma como a servidora usufruía do seu salário", acrescentam os defensores.
Os advogados dizem ainda que Flávio Bolsonaro, quando era deputado estadual, "nunca recebeu informação ou denúncia de que havia qualquer irregularidade no seu gabinete ou em relação ao pagamento dos colaboradores".
"Portanto, não passa de insinuação e fantasia a ideia de que o parlamentar participou de qualquer atividade irregular. Esse é apenas mais um ingrediente na narrativa que tentam armar contra a família Bolsonaro. Flávio Bolsonaro confia na Justiça e tem a certeza de que a verdade prevalecerá", conclui a nota.
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