Nas entrelinhas

O impeachment de cada um

Com 46 signatários de um amplo espectro político-ideológico, partidos políticos, parlamentares, movimentos sociais e entidades da sociedade civil protocolaram, ontem, na Câmara dos Deputados, o chamado superpedido de impeachment de Jair Bolsonaro. É uma síntese de todos os pedidos que foram apresentados até agora, com a inclusão do fato novo revelado pela CPI da Covid do Senado, ao investigar negociações suspeitas para a compra da vacina indiana Covaxin pelo Ministério da Saúde: a prevaricação do presidente da República.


O que não falta para o impeachment de Bolsonaro, sabe-se desde o primeiro ano de seu governo, são crimes de responsabilidade. Organizado por juristas, o texto do superpedido listou 23 crimes, organizados em sete categorias: crimes contra a existência da União; crimes contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados; crimes contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; crimes contra a segurança interna; crimes contra a probidade na administração; crimes contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos; e crimes contra o cumprimento de decisões judiciárias.


Acontece que o impeachment é um processo político, ou seja, não basta a existência dos crimes de responsabilidade. É preciso uma vontade política amplamente majoritária no Congresso, além de intensa mobilização popular em seu apoio. Sem isso, o impeachment permanece na gaveta do presidente da Câmara, como acontece até agora. Ou seja: o início de um processo de impeachment depende da sua aceitação pelo deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), aliado de Bolsonaro, cujo apoio na eleição para o comando da Casa foi decisivo.


É uma situação muito diferente dos impeachments anteriores. No caso do ex-presidente Fernando Collor de Mello, que renunciou ao mandato para evitar a cassação ao ser julgado pelo Senado, o presidente da Câmara era um adversário político declarado, o ex-deputado Ibsen Pinheiro (PMDB-RS). No impeachment da presidente Dilma Rousseff, o deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ) era, também, um desafeto, cuja eleição para o cargo foi uma derrota política para o Palácio do Planalto. Portanto, a resistência de Lira ao impeachment é resultado de um pacto de poder com o presidente da República.

União dos contrários

O inusitado do superpedido de impeachment é que extrapolou à polarização esquerda x direita, que caracterizou os dois pedidos anteriores. Ex-aliados do presidente, como os deputados Alexandre Frota (PSDB-SP), Joice Hasselman (PSL-SP) e Kim Kataguiri (DEM-SP), estão ao lado de políticos de esquerda, como Marcelo Freixo (PSB-RJ), Gleisi Hoffman (PT-PR) e Roberto Freire (Cidadania). Além de movimentos sociais e diversas instituições, como a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic) e o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST). Partidos de centro são os grandes ausentes.


Essa “unidade dos contrários” resulta, de um lado, o trauma brutal provocado pela crise sanitária, que registra mais de 500 mil mortos pela covid-19 e o comportamento negacionista do presidente da República; e, de outro, os objetivos eleitorais das forças políticas. A esquerda acredita que o desgaste que a mobilização popular pode causar a Bolsonaro sepultará as possibilidades de reeleição, mas a retórica oposicionista é mais forte do que a articulação efetiva para impedi-lo. A direita imagina que o afastamento do Bolsonaro pode abrir espaço para um candidato conservador, capaz de seduzir o eleitorado de centro, caso seja a única forma de evitar que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva volte ao poder.


Não é uma situação nova na política. Há inúmeros exemplos de acordos semelhantes na História. O resultado desse tipo de acordo, porém, nunca é igual para os dois lados: um será beneficiado em detrimento do outro. Há duas condicionantes para que o impeachment de Bolsonaro ocorra: de um lado, o engajamento efetivo da sociedade em grandes manifestações contra o presidente; de outro, uma articulação com o Centrão e os militares para que o general Hamilton Mourão assuma o Palácio do Planalto.