Após assumir-se gay no programa Conversa com Bial, exibido na madrugada de ontem, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, de 36 anos, despertou um grande debate. Se de um lado obteve apoio de aliados e de adversários, pois enxergam que a manifestação não pertence a grupos políticos, mas a toda a sociedade — e que é positivo ampliar o escopo com a presença de novos e variados atores —, de outro recebeu críticas por verem no gesto apenas uma forma de se cacifar para um voo mais alto na vida pública. Isso porque o governador é pré-candidato à Presidência da República, em 2022, pelo PSDB, numa disputa que tem ainda o governador de São Paulo, João Doria, o senador Tasso Jereissati (CE) e o ex-prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto.
Foi a primeira vez no país que um chefe de governo estadual fala publicamente sobre sua intimidade. Leite, em poucas horas, ganhou mais de 120 mil seguidores no Instagram e apareceu com mais menções positivas do que negativas nas mídias sociais, além de liderar os assuntos mais comentados, ontem, no Twitter.
Ciente de que um candidato com a bandeira da igualdade seria capaz de galvanizar apoios da comunidade gay contra sua candidatura, pois não se sente representada por seu governo, o presidente Jair Bolsonaro foi ao ataque. Disse aos apoiadores, na saída do Palácio da Alvorada, que o governador busca um cartão de visitas para as próximas eleições e que “está se achando o máximo” ao ter falado publicamente da vida íntima na tevê.
“O cara está se achando o máximo. Bateu no peito: ‘Eu assumi’. É um cartão de visita para a candidatura dele. Ninguém tem nada contra a vida particular de ninguém. Agora, querer impor o seu costume, o seu comportamento para os outros, não”, bradou Bolsonaro, que, ainda deputado, deu entrevistas relatando que preferia um filho morto a um gay.
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Cobranças
Isso não impediu que o governador fosse severamente questionado pela comunidade gay por seu apoio a Bolsonaro nas eleições de 2018, quando anunciou ter votado nele, no segundo turno — justificou, então, que não poderia deixar o PT voltar ao poder. Na época, o presidente já tecia comentários preconceituosos e seus apoiadores disseminaram várias fake news contra os grupos LGBTQIA+ pelas redes sociais.
Em abril, Leite solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF) que obrigasse o presidente a explicar declarações dadas em entrevista ao apresentador José Luiz Datena, no começo de março. Na ocasião, referindo-se ao governador gaúcho, Bolsonaro disparou. “Onde ele enfiou essa grana (destinada à saúde no estado)? Eu não vou responder pra ele, né? Mas eu acho que é feio onde ele botou essa grana toda aí”.
Em junho, Bolsonaro usou o termo “pessoa alegre do Amapá” para se referir ao vice-presidente da CPI da Covid, Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Ontem, voltou a fazer comentário semelhante: chamou Randolfe de “senador saltitante”. “Tem um médico bom para você: dr. Omar Aziz (presidente da CPI). Outro médico bom também é o Renan Calheiros (relator). Tem um melhor ainda, o senador saltitante. Sabem tudo sobre covid”, ironizou.
Presidente do Grupo Gay da Bahia (GGB), Marcelo Cerqueira conta que, de acordo com integrantes LGBTQIA+ que militam por direitos e cidadania, Leite estaria “se aproveitando” da situação com fins políticos, mas destacou que apoia sua exposição. Ele ressaltou, ainda, que é necessário que o governador tenha um posicionamento mais claro daquilo que pretende representar.
“Eu concordo que ele fale abertamente sobre sua orientação e relacionamento. Fico contente por falar com firmeza desse assunto, na verdade tão natural. Mas é preciso compreender que a fala dele não necessariamente indica suas posições político-partidárias sobre o assunto. É preciso um posicionamento mais direto e claro sobre representatividade e sobre todas as violências impostas aos LGBTQIA+. É fato que tudo que se some ao movimento é visto com muito bons olhos, mas não podemos esquecer suas filiações políticas ao bolsonarismo, que reúne tudo que repudiamos. É importante sair do armário e se assumir num momento como esse? Sim. Ele ganha mais ou perde mais? Vamos acompanhar”, observou.
Mais lideranças
Michel Platini, presidente do Centro Brasiliense de Direitos Humanos (Centrodh) e representante da Aliança Nacional LGBTI em Brasília, defendeu Leite e relatou a necessidade de surgimento de mais lideranças.
“Estão dizendo que ele faz uso político da fala visando a uma possível eleição presidencial. Mas há quem use o discurso contrário para vencer na política, como temos visto. Novas referências possibilitam que as futuras populações LGBTQIA+ vivenciem suas humanidades de outra forma. Esperamos que essa iniciativa ajude o governador na definição do seu campo de atuação e o afaste de lideranças que atuam contra os direitos da população LGBTQIA+, como o próprio presidente da República, que contou com seu apoio. Ele pode se tornar um interlocutor no campo político em que atua”, apontou.
O deputado federal David Miranda (PSol-RJ), um dos poucos parlamentares publicamente homossexuais, disse por meio das redes sociais que “não basta ser parte de uma população que é perseguida e assassinada todos os dias neste país e apoiar quem defende essa violência contra a gente. Representatividade se dá em estar presente na política/comunidade”.
O ex-deputado federal Jean Wyllys escreveu nas redes sociais que “coragem grande teria o ‘governador gay’ se tivesse se assumido e se colocado do lado LGBTQ no momento em que seu aliado, Bolsonaro, disseminava mentiras como o ‘kit gay’. Naquele momento, o governador era cúmplice”, cobrou.
A vereadora de São Paulo Erika Hilton (PSol), primeira mulher trans eleita na capital paulista, escreveu que o ato de Leite demandava “coragem” e que, por isso, tinha seu “respeito”. Mas lembrou que a luta da comunidade LGBTQIA+ “vai muito além”.
Já dentro do PSDB, a professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mayra Goulart considera que Leite ganha apoio de uma ala que não apoia o governador de São Paulo, João Doria, que postula ser o candidato do partido na corrida presidencial. A acadêmica ressaltou que o anúncio foi feito logo depois do Dia do Orgulho LGBTQIA+, “observando o vácuo de poder na centro-direita não bolsonarista que ele representa”. “Ele consegue avançar num segmento que é escolarizado, tem simpatia pelas elites, pode ser elite econômica, se identificar com elites e também ser simpático às minorias sexuais”, explicou.
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