Pandemia

Bolsonaro fez 'apelo' ao governo indiano por insumo da cloroquina

Telegramas, transcrições de telefonemas e e-mails enviados à CPI indicam que Bolsonaro fez "apelo" ao governo indiano para a exportação do insumo, alegando "questões humanitárias"

A história do combate à covid-19 no governo Bolsonaro é repleta de contradições. Vão desde a defesa intransigente de medicamentos como a cloroquina, que não tem eficácia comprovada contra a doença, até a crítica a vacinas ainda sem autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), enquanto, nos bastidores, o próprio presidente tentava adquirir um imunizante reprovado pela agência por falta de condições higiênicas nos laboratórios. Ajudam a contar essa história os e-mails trocados por embaixadores do Brasil com a Índia e com os Estados Unidos e, até, a crise do oxigênio no Amazonas, onde integrantes da CPI da Covid investigam se houve um experimento do Executivo local e federal de imunidade de rebanho.

Se, no contexto de busca e negociação com vacinas promissoras, a CPI da Covid-19 indica que o governo federal se omitiu, em relação à demanda por exportação de cloroquina, o mesmo não ocorreu. Telegramas, transcrições de telefonemas e e-mails enviados à CPI em caráter sigiloso, e obtidos pelo Correio, mostram que Jair Bolsonaro fez “apelo” ao governo indiano para a exportação do insumo, alegando “questões humanitárias” e reivindicando em prol de duas empresas brasileiras privadas que produzem o medicamento.

A CPI acumula, até agora, 23 sessões, 19 depoimentos e 1,6 terabyte de documentos resultantes de pedidos de informação e quebras de sigilo. Senadores reclassificaram um terço desse material, que estava sob sigilo, mesmo que pudessem ser encontrados no Portal da Transparência, por exemplo. Ao todo, a comissão reclassificou 2,2 mil arquivos, sendo 1.636 documentos do Ministério das Relações Exteriores, 97 do Ministério da Saúde, 445 a respeito da crise de oxigênio ocorrida em Manaus e quatro contratos da Fiocruz. Mas o conto negacionista que os e-mails do Itamaraty revelam têm a busca por cloroquina como principal matéria-prima.

Em 18 de abril de 2020, por exemplo, Jair Bolsonaro ligou para o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi. O assunto era o medicamento. Afirmava que o país tinha “resultados animadores no uso da hidroxicloroquina em pacientes com covid-19”. Eram os primeiros meses de pandemia no Brasil. Bolsonaro pedia a liberação de insumos da droga. “Precisamos, por uma questão humanitária, dos insumos farmacêuticos — em particular, de sulfato de hidroxicloroquina. O sucesso da hidroxicloroquina para tratar a covid-19 nos faz ter muito interesse na remessa indiana”, disse. Havia 530kg de insumos para a fabricação do medicamento, que seria destinado à empresa EMS e à farmacêutica Apsen, que pertence ao empresário bolsonarista Renato Spallicci.

Posteriormente, em 15 de maio, por telegrama, segundo os requerimentos de informação da CPI, “a embaixada do Brasil agradece a governo da Índia pela autorização para exportação de 530kg de HCQ (hidroxicloroquina) da EMS, em 8 de abril, e 1.000kg para a Apsen em 9 de maio”. No mesmo documento, o governo solicita uma nova liberação da droga.

Empresa admite que faturou mais em 2020

Ao Correio, a Apsen admitiu que houve um crescimento de receita líquida em 2020, se comparado ao ano anterior, de 18,1%, “totalizando R$ 816 milhões”. No entanto, disse que, desse montante, “apenas 3,6% está relacionado à receita líquida de Reuquinol (sulfato de hidroxicloroquina)”. Isso significa, no entanto, quase R$ 30 milhões em razão da medicação.

A Apsen também informou que a venda do medicamento, em 2020, correspondeu a 10,1% da receita líquida da empresa. No ano anterior, esse percentual foi de 8,2%. “O crescimento da receita em 2020 se deveu, em grande parte, a lançamentos dos últimos cinco anos”, justifica.

“A Apsen fabrica o Reuquinol há 18 anos. Com o aumento da demanda, a produção foi ajustada para organizar o abastecimento do mercado e prover o medicamento aos pacientes crônicos que fazem uso contínuo do medicamento”, justifica a empresa, que disse ter escalonado “ao Ministério das Relações Exteriores o risco de desabastecimento da matéria-prima para a produção do medicamento para os pacientes crônicos de uso contínuo da hidroxicloroquina”, após ter recebido dos fornecedores indianos um ofício sobre as restrições de importação.

Segundo a empresa, “todas as interações da companhia em âmbito governamental se dão por meios legais e dentro das normas estabelecidas pelo setor, sempre atuando com lisura e em conformidade com a legislação do país”. “Somos uma empresa apartidária que não apoia ou financia nenhum partido ou figura política.”

Movimento semelhante diz ter feito a EMS que, em nota enviada ao Correio, afirmou ter feito o pedido de compra de insumos para a produção de hidroxicloroquina em dezembro de 2019, com todo o pagamento já adiantado. A empresa diz ter reivindicado a liberação diretamente ao governo indiano e, um dia depois, acionado o governo brasileiro. “Os pedidos de apoio da EMS para liberar a carga de insumos seguiram todos os preceitos legais. No dia 12 de abril, a EMS recebeu parte da mercadoria solicitada.”

“Cabe destacar que, à época, havia uma intensa disputa internacional por insumos médicos o que levou governantes de todo mundo a se envolverem para apoiar os interesses das indústrias de seus países com as informações que possuíam até aquele momento”, justifica.

Diferentemente da Apsen, a EMS produz a hidroxicloroquina desde setembro de 2019 e teve o primeiro registro de venda dois meses depois, faturando pouco mais de R$ 1 milhão em dezembro de 2020. “No ano passado, as vendas de hidroxicloroquina representaram 0,2% do faturamento total da empresa e 11,6% do mercado total desse medicamento.”

Sem informar o faturamento com o boom da cloroquina, a EMS apenas reforçou “que os dados de vendas espelham um cenário de mercado fortemente marcado pela pandemia de covid-19, a partir de março de 2020” e que houve “uma forte procura espontânea pela hidroxicloroquina, o que impactou todo o setor farmacêutico no Brasil”.

“A empresa apoiou dois dos principais estudos clínicos no país para verificar a eficácia e segurança do uso do medicamento contra a covid, realizados pela Coalizão Covid-19 Brasil, que apontaram a ineficácia do produto”, esclarece.

Insistência
Foram mais de 50 mensagens trocadas, inclusive fora do horário de expediente e em fins de semana. Mesmo sem nenhuma eficácia comprovada contra a doença, a cloroquina foi disseminada como medicação para tratar covid-19 por Bolsonaro, que buscou ativamente fortalecer a indústria do fármaco e sua produção no Brasil. As negociações para liberação ocorreram no primeiro semestre de 2020. À época, a ineficácia da cloroquina contra o novo coronavírus ainda era estudada, mas já havia pareceres que alertavam sobre a promoção do medicamento sem as devidas comprovações.

No início de abril, por exemplo, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) deliberou sobre o assunto, diante da popularidade do medicamento. “Ouvindo especialistas na área, de dentro e de fora da instituição, e amplamente amparada por estudos científicos sobre o tema, corrobora as recomendações dos órgãos sanitários e da comunidade médico-científica mundial de que não há, até o momento, evidência científica suficiente baseada em ensaios clínicos com humanos sobre a eficácia desses medicamentos para o tratamento da doença causada pelo novo coronavírus”, já alertava.

O governo federal, por outro lado, procurou se abastecer de informações em defesa ao uso da cloroquina. Em maio, há o icônico aviso do embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Nestor Foster, onde ele comemora a liberação do medicamento durante o governo de Donald Trump. “Habemus cloroquina”, escreve o diplomata. As trocas de mensagens com a Índia, por sua vez, continuaram em junho e julho.

Na última semana, no colegiado, o presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), afirmou que a mensagem de Foster “é uma vergonha”. “Vai explicar isso para quem perdeu um irmão, como eu, para quem perdeu amigos, para quem ficou órfão, perdeu pai e mãe, está jogado à sorte. É isso que estamos atrás. Não é crucificar e fazer prejulgamento”, criticou. “Se um embaixador escreve isso dessa forma, não dá pra levar a sério. Eu não acreditei que fosse verdade o palavreado do embaixador. A Comissão de Relações Exteriores (CRE) tem que tomar providência em relação a esse tipo de linguajar. Vamos chegar a 500 mil mortos. Meio milhão. Cidades inteiras se foram”, afirmou. (BL, ST e LC)

 

Tratativas para a compra de Covaxin

E à medida que o fim de 2020 se aproximava, começaram as tratativas, também, para a compra da Covaxin. Integrantes da CPI estranharam a negociação da vacina produzida na Índia, pois, na época, Bolsonaro já havia ignorado e-mails da Pfizer. Além disso, no mesmo período, o presidente interrompeu as negociações do Ministério da Saúde com o Butantan para compra da CoronaVac e abriu mão de ser o segundo país no mundo a iniciar a vacinação. Entre os argumentos de Bolsonaro, ele afirmava que não compraria nenhuma vacina que não fosse aprovada pela Anvisa. Porém demonstrava interesse na vacina indiana, que seria vendida ao governo brasileiro pela empresa Precisa. Há requerimento para que um de seus sócios, o empresário Francisco Maximiniano, vá depor à comissão.

“Esses e-mails contam a história da negação em relação à vacina. Nas omissões criminosas que o governo cometeu não adquirindo vacinas. Isso ficou patente em relação à Pfizer e outros imunizantes. Traz indícios também que o presidente da República pode ter atuado com crime de advocacia administrativa em favor de alguns laboratórios nacionais, quando requisita a importação de insumos para a cloroquina, e em relação a uma empresa brasileira especificamente, quando ele se reporta por volta do dia 8 de janeiro, advogando com o primeiro-ministro da Índia por uma vacina para uma empresa brasileira”, afirma o vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).

O relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), afirma que “houve um esforço do Itamaraty, enquanto diplomacia, para trazer insumos para o tratamento precoce, importar cloroquina”. “Coisas feitas à luz do dia, que nós não acreditávamos que pudesse alguém naquela cadeira baixar o nível de uma relação diplomática internacional”, comenta.

Terror no Amazonas
Para o parlamentar, a história se encontra com outra troca de e-mails importantes durante a pandemia. A da empresa White Martins com a Secretaria de Saúde do Amazonas e o Ministério da Saúde, às vésperas da crise do oxigênio e do colapso do sistema hospitalar do estado no início da segunda onda da pandemia no Brasil. A empresa avisou a secretaria de estado do aumento no consumo de oxigênio por duas vezes durante o ano de 2020 e pediu socorro em 7 de janeiro, quando enfrentou a primeira emergência logística e precisava trazer oxigênio do Pará.

Em mais de uma ocasião, nos depoimentos da CPI, o senador Eduardo Braga (MDB-AM) destacou a gravidade do colapso do sistema de saúde amazonense. À época, o estado perdeu, em um único mês, mais de 3,5 mil pessoas vítimas da covid-19. Em alguns dias, o estado chegou a perder mais de 200 vidas para o coronavírus. Eram frequentes as cenas de famílias carregando cilindros de oxigênio pelas ruas e fazendo longas filas em busca de abastecer os recipientes enquanto os parentes sufocavam nos hospitais.

“Ocorreu o aviso antecipado sobre a tragédia que iria ocorrer em Manaus e não tiveram providências tomadas no devido momento. São histórias que se complementam. Temos elementos para acreditar que Manaus foi utilizada como uma espécie de laboratório da hidroxicloroquina. Os manauaras foram usados como cobaia para o enfrentamento do governo, baseado na cloroquina e imunidade coletiva. Todos os elementos que temos com os depoimentos do secretário de Saúde do Amazonas, Pazuello e autoridades que o acompanharam e documentos nos dão certeza disso”, garante Randolfe Rodrigues. (BL, ST e LC)