Desde a última segunda-feira, o país foi tomado de assalto por declarações que minam o nosso já combalido enfrentamento à covid-19. A “denúncia” de que estados e municípios estariam inflando o número de mortes da pandemia, a fim de receber mais recursos do governo federal, provocou particular espanto em razão da fonte citada: o Tribunal de Contas da União. Felizmente, o TCU agiu de maneira célere e negou, categoricamente, a autenticidade das informações que estariam sendo atribuídas ao tribunal.
Após o esclarecimento, as justificativas apresentadas pelos envolvidos nessa suposta revelação bombástica são um escárnio. O estudo, elaborado por um auditor fiscal do TCU, teria sido enviado ao Palácio do Planalto pelo pai do autor. O remetente, um coronel da reserva do Exército com cargo na Petrobras, seria uma pessoa próxima do presidente Jair Bolsonaro. Ou seja: sem qualquer respaldo técnico ou legal, a maior autoridade da República colocou em questionamento os dados oficiais sobre a doença mais mortífera do Brasil, em nova tentativa de contestar o óbvio, de confundir a opinião pública, de menosprezar o sofrimento de brasileiros que perderam entes queridos desde março do ano passado.
A tentativa de falsear a realidade, usurpando a credibilidade do TCU, terá consequências. Afastado de suas funções no tribunal e alvo de uma investigação interna pela corregedoria, o servidor em questão corre risco de ter agentes da Polícia Federal em seu encalço. Alexandre Marques também terá de se explicar à CPI da Covid, que convocou o auditor fiscal e aprovou a quebra de sigilo do servidor. Contra as movimentações às sombras, nada melhor que a transparência para afastar a mentira, preservar a verdade, denunciar o crime, punir os responsáveis.
O segundo ataque ao bom senso e à ciência partiu também do chefe do governo. Dessa vez, contra um dos símbolos da pandemia: a máscara. Uma das poucas — senão a única — armas disponíveis para evitar a infecção por covid em um país que ignora o distanciamento social e ainda está sedento por vacinas foi desprezada no Palácio do Planalto.
O presidente Jair Bolsonaro disse ter encomendado a “um tal de Queiroga” a produção de um parecer que dispensaria o uso da proteção facial para quem já tivesse sido vacinado ou infectado pelo novo coronavírus. Em meio à perplexidade geral e surpreendido pela demanda presidencial, Marcelo Queiroga agiu como malabarista para dizer que, antes de tirar a máscara, é preciso ter vacina. Nessa discussão insensata, nem sequer teve tempo de dizer uma obviedade: vacinados ou infectados por covid ainda podem transmitir o vírus. Impõe-se, portanto, o traje facial hoje, amanhã e por muito tempo no Brasil.
Somatório de assombros
Somados a ações como o gabinete paralelo, a impressionante incompetência na aquisição de vacinas e o esforço deliberado para instituir a cloroquina como uma política pública contra a covid, esses assombros ocorridos em Brasília atestam o inesgotável repertório do negacionismo à pandemia. A cada dia, e diariamente, atos e declarações de integrantes do governo federal evidenciam uma estratégia deliberada de desvirtuar o enfrentamento à pandemia. É preciso questionar, sabotar, mentir, inventar, tergiversar, confundir, distrair a opinião pública para esconder a realidade dos fatos.
A desfaçatez atende a um único objetivo: evitar a todo custo que a pandemia se torne um obstáculo político intransponível para a reeleição de Jair Bolsonaro. Com a proximidade do ano eleitoral, está cada vez mais explícito que o governo federal — e o seu protagonista — agirá para politizar ainda mais a pandemia. Basta lembrar a resposta que deu aos passageiros do voo comercial que, surpreendidos pela aparição inopinada do presidente no avião, o acusavam de “genocida”, ontem, em Vitória. “Quem fala ‘Fora Bolsonaro’ tem que estar viajando de jegue, não de avião, é ou não é? Para ser solidário ao candidato deles”, disse o candidato-presidente, em seu estilo característico.
Enquanto isso, outro argentino manifestou sua visão particular sobre os habitantes desta terra sofrida e polarizada. Em uma declaração marcada pelo notório embuste aristocrático portenho, o presidente Alberto Fernández teorizou que os brasileiros são provenientes da selva. O diagnóstico de Fernández se junta ao anedotário do papa Francisco, que, em tom de galhofa, disse que muita cachaça e pouca oração formam as razões da nossa tragédia pandêmica. Para nossa infelicidade, de fato, muitos agem neste país como selvagens em relação à pandemia. Que a lei, em primeiro lugar, e a civilidade prevaleçam sobre eles.