O depoimento da médica infectologista Luana Araújo à CPI da Covid deixou claro o motivo de ela ter sido vetada pelo Palácio do Planalto para comandar a Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19 do Ministério da Saúde. Com declarações fortes e na contramão do negacionismo do governo em relação à pandemia, ela defendeu a ciência, ressaltou a ineficácia de medicamentos como cloroquina e hidroxicloroquina no combate à doença e criticou a estratégia de imunidade de rebanho e a politização da crise sanitária.
Dona de um extenso currículo, com graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestrado na renomada Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, Luana Araújo chegou a comandar a secretaria por 10 dias, indicada pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Porém, depois de reportagens mostrando que a médica era contrária ao chamado tratamento precoce e refutava orientações não amparadas pela ciência, a nomeação dela acabou sendo cancelada.
À CPI, Luana Araújo disse não saber o motivo do veto. “Não foi me dada nenhum tipo de justificativa pela minha saída”, afirmou. “O próprio ministro disse que lamentava, mas que meu nome não ia passar pela Casa Civil”, disse. Em seguida, acrescentou: “Eu falei Casa Civil porque é onde entendo que esse nome seja aprovado ou não. Eu não sei se é esse o processo”.
A infectologista relatou que, nos dias à frente da secretaria, procurou pessoas dentro e fora da pasta para montar a equipe, mas os principais nomes não tiveram interesse de atuar neste governo. “Infelizmente, por tudo que vem acontecendo, essa polarização esdrúxula, politização incabível, os maiores talentos que temos para trabalhar nessas áreas não estavam à disposição para trabalhar nessa secretaria”, lamentou.
Ela fez questão de enfatizar, também, o perigo de prescrever medicamentos, como a cloroquina, para tratar pacientes com covid-19. “Nós temos estudos que mostram que (...) existe um aumento da mortalidade com o uso de cloroquina e hidroxicloroquina”, frisou. Segundo ela, o resultado chega a “uma medida estatística de aumento de risco, de 1,77, para o uso da cloroquina”. “Isso significa um aumento de mortalidade de 77%. (…) Quando você transforma isso numa decisão pessoal, é uma coisa. Quando você transforma isso numa política pública, é outra.” De acordo com a especialista, a autonomia médica faz parte da profissão, “mas não é licença para experimentação”.
A médica foi questionada se discutiu com Queiroga e outros integrantes do Ministério da Saúde sobre tratamento precoce. Ela respondeu que o Brasil não deveria estar debatendo o assunto. “Essa é uma discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente. Quando eu disse, há um ano, que estávamos na vanguarda da estupidez mundial, eu, infelizmente, ainda mantenho isso em vários aspectos, porque nós ainda estamos aqui discutindo uma coisa que não tem cabimento”, reprovou. “É como se a gente estivesse escolhendo de que borda da terra plana a gente vai pular. Não tem lógica.”
Sobre a tão comentada imunidade de rebanho natural, Luana Araújo foi categórica. “Imunidade de rebanho natural dentro da Sars-Cov-2 e da covid-19 é impossível de ser atingida. Não é uma estratégia inteligente”, disparou.
A base governista não conseguiu rebater a médica e se amparou na narrativa de que o depoimento foi técnico e não prejudicou o Planalto. O senador Jorginho Mello (PL) negou que a oitiva tenha deixado clara ingerência política no Ministério da Saúde. “Cargo de confiança, prefeito, governador, presidente, ninguém convida alguém que não esteja alinhado politicamente, ponto. Isso é um direito que o contratante tem. É normal”, afirmou.
O também governista Marcos Rogério (DEM-RO) frisou que “factualmente, do ponto de vista da CPI, não acrescenta nada” a oitiva da médica, porque ela não apresentou novas provas. “Precisa de uma CPI para provar que o presidente Bolsonaro não usa máscara? Precisa de CPI para provar que ele, em algum momento, fez a defesa da cloroquina?”, questionou.
Gabinete paralelo
Para parlamentares de oposição e independentes, o depoimento conseguiu mostrar a ingerência política, além da falta de autonomia de Queiroga, a despeito do que ele disse na CPI. Na avaliação do vice-presidente, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), a oitiva mostrou “um elemento novo: o de que o gabinete paralelo continua funcionando” para assessoramento de Bolsonaro na pandemia. Isso porque, na avaliação dele, não haveria outro motivo para a dispensa de Luana Araújo senão uma visão negacionista.
“Até senadores governistas confirmaram que ela preenche todos os requisitos técnicos. Qual é a razão para vetar, no meio de uma pandemia, a única infectologista que o ministério viria a ter naquele nível? A única posição que me parece que levou ao veto foi ela ser a favor da ciência”, destacou Rodrigues, reiterando haver “um grupo negacionista que continua atuando, impedindo que os melhores quadros, as melhores cabeças da ciência brasileira possam contribuir no enfrentamento à pandemia”.