O americano Donald Trump, a peruana Keiko Fujimori, o boliviano Carlos Mesa, o mexicano López Obrador, o israelense Benjamin Netanyahu e os brasileiros Aécio Neves e Jair Bolsonaro. Todos questionaram o resultado das eleições em seus países e passaram a falar, sem comprovação, de fraudes.
Fujimori e Netanyahu são os mais recentes. Ambos foram derrotados em suas respectivas disputas eleitorais.
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O israelense, por exemplo, diz que está testemunhando "a maior fraude eleitoral da história do país". Keiko Fujimori, filha do ditador peruano Alberto Fujimori, afirma haver "uma clara intenção de boicotar a vontade popular".
Trump falou em "crime do século" em 2020, mas não conseguiu convencer nenhum dos mais de 50 juízes que avaliaram suas reclamações.
Mas tanto o ex-presidente americano quanto o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro (sem partido), são exceções nesse grupo por terem sido vitoriosos e ainda assim terem contestado as urnas.
Bolsonaro aceitou o resultado, mas disse, sem apresentar evidências até hoje, que teria vencido no primeiro turno em 2018. O americano falou em fraudes mesmo quando venceu em 2016.
E, assim como fez Trump meses antes de disputar a reeleição, em 2020, a mais de um ano para as eleições brasileiras, Bolsonaro já tem lançado dúvidas sobre a lisura do pleito e se aceitará caso venha a ser derrotado.
A contestação das eleições é um direito dos políticos em um sistema democrático e um mecanismo importante para apontar fraudes e corrigir injustiças. É um recurso disponível a todo e qualquer candidato, de qualquer parte do espectro político.
Mas, nos últimos anos, isso virou uma estratégia política.
"Os líderes populistas autoritários de hoje agem estrategicamente visando deslegitimar o processo eleitoral e, assim, a própria democracia liberal", afirma a cientista política Maria do Socorro Sousa Braga, professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Mas o que eles têm a ganhar com isso?
Segundo pesquisadoras ouvidas pela BBC News Brasil, principalmente mobilizar sua base de apoio, ampliar seu raio de poder e questionar a legitimidade dos seus adversários.
Aécio e a contestação das urnas em 2014
A antropóloga Isabela Kalil, coordenadora do Núcleo de Etnografia Urbana da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, pesquisa a extrema-direita, o bolsonarismo, o conservadorismo e a desinformação.
Para ela, quando o então candidato à Presidência Aécio Neves (PSDB-MG), em 2014, contestou o resultado eleitoral — com denúncias refutadas depois — ele acendeu no país a desconfiança dos eleitores e a discussão de propostas de mudanças no processo eleitoral.
Hoje deputado federal, Neves defende a implementação do voto impresso porque diz que isso aumentaria a confiança dos eleitores e esvaziaria acusações infundadas de fraude.
Em 2015, uma auditoria do PSDB sobre a contestação eleitoral um ano antes não conseguiu provar fraude e afirmou que o sistema de voto eletrônico não permitia auditagem completa.
Anos depois, Neves foi gravado pelo empresário Joesley Batista afirmando ter contestado a reeleição de Dilma Rousseff em 2014 para "encher o saco" do PT.
Atualmente, a principal mudança em debate é a introdução do voto impresso, encampada por Bolsonaro e políticos não apenas de sua base de apoio, como Ciro Gomes (PDT).
De acordo com essa proposta, o voto continuaria sendo feito por meio de urna eletrônica, mas uma impressora mostraria ao eleitor um recibo em papel do voto. Esse papel seria automaticamente depositado em uma outra urna, sem passar pela mão do eleitor ou de qualquer outra pessoa.
Essa mudança, segundo seus defensores, garantiria mais confiabilidade ao processo eleitoral. Para a deputada federal bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, a eleição de 2022 só será confiável com a produção desse comprovante em 100% das urnas eletrônicas.
Em sua Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para instituir o voto impresso, Kicis afirma que "o voto puramente eletrônico, a par de não dar a necessária segurança jurídica ao eleitor, ainda fere os princípios da publicidade e da transparência, confirmando que a urna eletrônica de votação, embora tenha representado modernização do processo eleitoral, no sentido de garantir celeridade tanto na votação quanto na apuração das eleições, tem sido alvo de críticas constantes e bem fundamentadas no que se refere à confiabilidade dos resultados apurados".
Além disso, o texto da PEC diz que o país se tornou refém da "juristocracia do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)" em questões eleitorais, porque a corte "boicota" a medida e que a impressão do comprovante de voto é "a solução internacionalmente recomendada — exceto pelos técnicos do TSE — para que as votações eletrônicas possam ser auditadas de forma independente".
Bolsonaro disse a parlamentares em maio: "Tenho certeza que nas urnas de 2022, com o voto auditável aprovado por vocês, tendo à frente a Bia Kicis, não teremos mais dúvida, não pairará qualquer sombra de dúvida na cabeça de qualquer cidadão brasileiro se o processo foi conduzido com lisura ou não".
Naquele mesmo mês, ele afirmou que, se a PEC for aprovada pelo Congresso até outubro deste ano, o voto impresso será instituído para 2022 e fez insinuações em caso de interferência do Judiciário, que já barrou essa mudança em anos anteriores.
"Vai ter voto impresso, porque se não tiver voto impresso, sinal de que não vai ter a eleição. Acho que o recado está dado."
Para Kalil, a estratégia de Bolsonaro tem menos a ver com uma preocupação em tornar o sistema eleitoral brasileiro ainda mais seguro e mais com a "estratégia recorrente de líderes autoritários de desacreditar as eleições e o processo democrático como um todo".
"Para eles, contestar a urna é uma oportunidade para avançar num projeto de erosão democrática."
'Desacreditar instituições e desincentivar o voto'
Mas o que teriam a ganhar candidatos e líderes ao fazer isso? Para Sousa Braga, à medida que esses políticos desacreditam as instituições democráticas por meio delas próprias, eles passam a concentrar cada vez mais poder sem respeitar o resultados das urnas.
Segundo ela, o contexto brasileiro é favorável a esse tipo de movimento por ter "forte eleitorado conservador, com alta desconfiança das instituições representativas e de boa parte da classe política, em contexto de crescente desinstitucionalização das relações civis-militares (com uma maior participação política de militares)".
Kalil aponta que esse tipo de postura transforma o processo político numa campanha permanente. A base de apoiadores dessas lideranças autoritárias permanece mobilizada, unida e ativa para além do período eleitoral. Em caso de derrota nas urnas, essa massa atuará para minar a legitimidade de quem venceu.
"Você coloca o eleito sob ataque. Passa a haver uma série de ações contra o chefe ou a chefe de Estado exatamente com a justificativa de que a conquista daquela posição não é legítima porque foi fraudada. E se mantém também a base com o objetivo de derrubar o governo ou de causar distúrbios."
As acusações de fraude feitas por Netanyahu, por exemplo, forçaram políticos do partido Yamina, que integra a coalizão que derrotou o atual premiê, a recorrerem à escolta policial após receberem ameaças de morte.
Nos Estados Unidos, uma manifestação contra a confirmação pelo Congresso da vitória do democrata Joe Biden desaguou na invasão do Capitólio. Os líderes do Congresso precisaram ser evacuados pelo risco de serem assassinados. Cinco pessoas acabaram mortas.
Para Kalil, a estratégia tem dois pilares: desacreditar o processo democrático e desestimular as pessoas de votarem. O segundo, diz ela, é defendido por alguns grupos no Brasil, mas está longe de ter a força que tem em países como os Estados Unidos.
Kalil explica que esse movimento tem laços com as raízes dos processos eleitorais, quando apenas homens brancos com posses tinham direito a votar.
Na base das regras arcaicas, estava a noção de que esses seriam os "mais capazes"para definir o destino político da sociedade. Esse tipo de argumento tem ressonância em grupos que defendem o fim do direito ao voto para analfabetos, por exemplo.
Como resultado das acusações de fraude e do desincentivo ao voto, determinados grupos sociais acabam deixando de participar do processo eleitoral.
"Se o sistema não funciona, as pessoas vão deixando de participar, porque elas começam a achar que tudo aquilo é um teatro, que tudo aquilo é uma fraude. Então por que que elas vão sair de casa para votar se no final das contas tudo vai ser fraudado mesmo, é tudo uma grande mentira. O que está por trás disso é a não participação", diz Kalil.
A antropóloga afirma que esse fenômeno ainda não ocorre no Brasil, embora a abstenção esteja crescendo aos poucos a cada pleito, e a soma de votos brancos e nulos chegue a superar o total de votos válidos em algumas cidades. Ela e outros pesquisadores têm atribuído essa tendência não a uma queda na confiança da população em relação ao sistema eleitoral, mas, entre diversos outros motivos, a uma desilusão com o sistema político ou o modelo de democracia representativa no Brasil.
No livro Como As Democracias Morrem, os autores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt afirmam que "falsas acusações de fraude podem minar a confiança pública em eleições — e quando cidadãos não confiam no processo eleitoral, muitas vezes perdem a fé na própria democracia".
Isso aconteceu no México, por exemplo. O atual presidente, Andrés Manuel López Obrador, descrito por alguns analistas como um populista de esquerda, não aceitou o resultado de duas eleições anteriores por causa de supostas fraudes.
Em 2006, quando contestou o resultado das urnas, a confiança no sistema no sistema eleitoral mexicano despencou, e quase quatro em cada dez mexicanos não confiaram no resultado, apontam Levitsky e Ziblatt. Em 2012, quando ele foi novamente derrotado, sete em cada dez acreditavam em fraudes nas urnas.
Agora no poder, López Obrador tem agido para enfraquecer a instituição eleitoral do país a pretexto, segundo ele, de evitar fraudes.
Para Sousa Braga, da UFSCar, os principais obstáculos a avanços autoritários estão justamente no fortalecimento das instituições democráticas. "Os partidos, independente do seu campo ideológico, precisam defendê-las e agir de acordo com as regras criadas por eles mesmos."
A pesquisadora afirma que, em 2022, o Judiciário brasileiro terá "papel crucial" em apurações de abusos que venham a ser cometidos na campanha em redes sociais, por exemplo, para evitar que a legitimidade do processo eleitoral seja afetada.
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