CPI da Covid

"Evidências anedóticas não são evidências científicas", diz Natalia Pasternak à CPI

Pesquisadora afirma que a cloroquina funciona em estudos "in vitro", em tubo de ensaio (nos laboratórios), mas não nas células do trato respiratório

Sarah Teófilo
postado em 11/06/2021 12:23 / atualizado em 11/06/2021 12:27
 (crédito: Jefferson Rudy/Agência Senado)
(crédito: Jefferson Rudy/Agência Senado)

Em depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da covid-19, nestasexta-feira (11/6), a pesquisadora e microbiologista Natalia Pasternak explicou as diferenças entre evidências científicas e evidências anedóticoas — ou seja, casos pontuais que apontam para algum fato, mas que não garante a existência de uma correlação entre as questões observadas. A microbiologista citou diversos estudos para explanar os motivos pelos quais a cloroquina, medicamento amplamente difundido pelo presidente Jair Bolsonaro no combate à covid-19, não funciona contra a doença.

“Ela nunca teve plausibilidade biológica para funcionar. O caminho pelo qual ela bloqueia a entrada do vírus na célula só funciona in vitro, em tubo de ensaio, porque, nas células do trato respiratório, o caminho é outro. Então, ela já nunca poderia ter funcionado”, explicou. De acordo com ela, o remédio nunca funcionou contra outras viroses, já tendo sido testada “para várias doenças provocadas por vírus, como zika, dengue, chikungunya, Aids, ebola”.

Os estudos em tubo de ensaio são as análises em laboratórios, que nem sempre se traduzem em medicamentos. É o primeiro passo da pesquisa de medicamentos. Segundo a pesquisadora, menos de 10% de medicamentos que passam no tubo de ensaio se confirmam e se transformam em medicamentos.

No caso da cloroquina, Natalia ressaltou que ela “não funciona em células do trato respiratório”. “Não funciona em camundongos, não funciona em macacos, e também já sabemos que não funciona em humanos. Senhores, a cloroquina já foi testada em tudo. A gente testou em animais, a gente testou em humanos. A gente só não testou em emas porque as emas fugiram, mas, no resto, a gente testou em tudo, e não funcionou”, frisou.

Conforme a pesquisadora, “evidências anedóticas não são evidências científicas”. “Evidências anedóticas, (como) ‘ah, mas o meu vizinho, o meu cunhado, o meu tio tomou e se curou’, não são evidências científicas, elas não servem para a ciência, elas são apenas causos, histórias. E o plural de evidências anedóticas não é evidências científicas, é só um monte de evidências anedóticas. Não interessa quantas pessoas a gente conhece que usaram cloroquina e se curaram, isso não se transforma em evidência científica, isso precisa ser investigado. Por quê? Correlação não é a mesma coisa que causa e efeito”, disse.

A pesquisadora explicou que “correlação são coisas que acontecem ao mesmo tempo e que, de repente, até suscitam uma pergunta para ser investigada, mas não uma resposta”. “Para ter uma resposta, a gente precisa saber uma relação de causa e efeito. Para isso, a gente usa estudos randomizados, controlados, duplos-cegos e com grupo placebo (pílula de mentira), de que os senhores tanto já ouviram falar. Esse é o tipo de estudo que consegue estabelecer uma relação de causa e efeito”, pontuou, explicando que no caso de estudos observacionais, observa-se algo que gera uma pergunta, mas não uma resposta.

Natalia explicou que no caso da cloroquinaa, os estudos vão comparar grupos diferentes, com diferentes etapas de estudo, com testes pré-clínicos (estudos in vitro e depois de animais, roedores e não roedores, como camundongos e macacos) e clínicos (em humanos). “Nessas fases, a gente vai ver toxicidade, se o remédio realmente tem efeito, qual é a dose segura e, na Fase III, a comparação justa”, disse.

Pressão política

De acordo com ela, durante a pandemia, os estudos da cloroquina não foram feitos nessa ordem devido ao cenário pandêmico. “A gente teve uma pressão popular e política muito grande para testar esse medicamento. Se tivesse feito na ordem, já teria parado ali, nos pré-clínicos, porque a cloroquina não tinha plausibilidade biológica e nunca funcionou nos testes em animais, mas, como existia uma pressão popular muito grande, acabaram sendo feitos vários estudos”, disse.

O primeiro teste ocorreu em março do ano passado, segundo a pesquisadoras, em células de rins de macaco. “Esse estudo mostrou que a cloroquina conseguia bloquear a entrada do vírus nessas células genéricas, que são células onde existe um caminho biológico para a cloroquina atuar. E esse caminho não se concretiza em células do sistema respiratório. A cloroquina só funciona em tubo de ensaio, em células genéricas. Por isso que ela nunca funcionou em modelo animal, nem em humanos”, explicou.

Natália pontuou que em seguida, houve um estudo em Manaus, que se tornou muito conhecido. Lá, observou-se que a dose alta da cloroquina era perigosa e que a dose baixa não funcionava. “Só esse estudo já foi suficiente para que vários países acendessem um alerta: ‘Opa! Parece que esse negócio não funciona’".

Em seguida, segundo ela, houve um estudo feito por um grupo alemão que observou as células do trato respiratório humano. “E viu que realmente, nessas células, a cloroquina não funciona porque a entrada do vírus que ela bloqueia não é a mesma entrada que o vírus usa nas células respiratórias humanas. O vírus, nas nossas células, usa outro caminho, um caminho para o qual a cloroquina não faz nem cosquinha. Daí a gente vê que a cloroquina nunca poderia ter funcionado em humanos”, explicou.

Tratamento precoce

A pesquisadora explicou que além dos estudos em animais, o que já seria suficiente para descartar o medicamento, houve estudos em humanos, inclusive do chamado “tratamento precoce”. “PEP é a exposição profilática pós-exposição, ou seja, a pessoa foi exposta ao vírus e já começa o tratamento — não dá para ser mais precoce do que isso. Não funcionou. Aí a gente teve os de PrEP, que é profilático. Vamos dar para profissionais de saúde porque eles são muitos expostos: também não funcionou”, disse.

“Ou seja, a gente testou isso tudo no ano passado. Tudo o que está nesse gráfico já era mais do que suficiente para enterrar a cloroquina de vez e a gente poder mover a discussão para coisas mais relevantes. Isso foi no ano passado. Nós estamos pelo menos seis meses atrasados em relação ao resto do mundo, que já descartou a cloroquina e, aqui no Brasil, a gente continua discutindo isso”, completou.

Diferença

Na semana passada, a médica Nise Yamaguchi prestou depoimento na CPI. A médica é uma grande defensora do uso de medicamentos ineficazes contra covid-19, como cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina. Em determinado momento, senadores pediram a ela que apontasse um estudo que mostrava a eficácia da cloroquina contra covid-19. A médica havia levado uma quantidade significativa de papeis à comissão, mas não soube apontar um estudo solicitado.

 

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