Entrevista

Renan Calheiros sobre covid: 'Tragédia brasileira não é fruto do acaso'

Relator da CPI da Covid no Senado afirma que o ex-ministro Pazuello "mentiu compulsivamente" no colegiado e que os efeitos da pandemia no Brasil são "consequência de erros, muitos, em várias esferas da administração pública"

Relator da CPI da Covid, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) encerra as primeiras três semanas de funcionamento da comissão com cuidado para evitar qualquer antecipação ou conclusão precipitada. Elege a imparcialidade e a isenção como premissas para acompanhá-lo na relatoria. “Não serei um relator das minhas convicções”, avisa. Mas, como político de longa data, sabe que resposta pronta nem precisa esperar pergunta. Ou seja: tem coisa que já dá para dizer. E ele diz.

Renan afirma que o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, “mentiu compulsivamente” em seu depoimento, o que deve, inclusive, motivar nova convocação. Que dos oito depoentes, apenas um não era aliado do governo e, ainda assim, as tentativas de blindagem foram infrutíferas — o que causou perplexidade e desespero à tropa de choque do governo.

E vai além: “Estamos diante de uma nova cepa do negacionismo. Nega-se tanto, com tamanha intensidade e despudor que chegam a negar o próprio negacionismo. Surreal esse momento da vida nacional, onde a mentira alienante passou a ser um método”.

Calheiros acredita que a investigação em curso já legou avanços. Uma delas é, após 1 ano e 3 meses, o governo assumir um posicionamento técnico, desaconselhando o uso da cloroquina. Afirma ainda que “as cornetas golpistas silenciaram”. Acredita que o primeiro efeito da CPI já está alcançado. “Nessa perspectiva de reafirmar conceitos civilizatórios, resgates iluministas e humanos, a CPI foi pedagógica.”

Para ele, “a tragédia brasileira não é fruto do acaso, mas consequência de erros, muitos, em várias esferas da administração pública”. “Nós temos, provavelmente, o único chefe de Estado que conspirou diariamente contra todas as orientações da ciência. Um obscurantismo medieval, macabro.”

Embora esteja mergulhado na CPI, Renan não deixa de observar o cenário político. Defende candidatura própria do MDB à Presidência da República. Mas observa os passos dos opositores e aliados históricos. Sobre o recente encontro entre Lula e Fernando Henrique Cardoso, entende ser um sinal alvissareiro de retomada do diálogo e civilidade na política. “Esse fundamentalismo, essa jihad política, não pertence à nossa sociedade.”

Nessas primeiras semanas de CPI, já é possível dizer quem foi responsável por esse quadro trágico de quase 450 mil mortes?
Seria precipitado, e até mesmo temerário, indicar ou insinuar nomes quando estamos ainda no início da investigação. A apuração é longa com vários ângulos e múltiplos personagens. O que eu posso atestar, com a vivência que tenho de muitas CPIs ao longo dos anos, é que essa tem algumas especificidades. A primeira é que a comissão, em tempo recorde, foi a que mais reuniu elementos consistentes em apenas três semanas de trabalho. Elementos relevantes a partir de oito depoimentos apenas. O trabalho de manuseio de documentos comprobatórios ainda é incipiente e vai aprofundar muito a investigação. A outra característica da CPI é que boa parte do conjunto probatório já é conhecido. As declarações estão dadas, os atos formais foram praticados, expedientes foram emitidos e aplicados. Em plena época digital eles são “inapagáveis”, se eternizaram. Uma outra peculiaridade é que esta CPI é a primeira sob o signo efetivo dessa nova realidade, que são as redes sociais. Recebemos muitas informações, documentos, dicas de investigação e argumentos por meio das redes sociais. E essa interação é muito qualificada. Eu mesmo abri espaço em minhas redes para receber sugestões de perguntas dos internautas e já fiz algumas, cuja pertinência era indiscutível.

Qual foi a informação mais importante trazida pelos depoentes até o momento?
É desaconselhável valorar as informações trazidas pelos depoentes e documentos já anexados. Todas as informações levadas ao conhecimento dos senadores são relevantes. Mas temos informações preciosas dos ex-ministros Mandetta, Teich, do presidente da Anvisa. Igualmente relevantes são as declarações de Fábio Wajngarten, Ernesto Araújo e Eduardo Pazuello. Mas um dado chama atenção. Até aqui ouvimos oito depoimentos. Apenas um pode ser considerado como de oposição. O ex-ministro da Saúde (Mandetta) que integrou o atual governo. O depoimento do CEO da Pfizer, Carlos Murillo, é apartidário. Os outros seis depoimentos são de pessoas do governo. E, tenho a impressão, que foram os que mais criaram desconforto entre senadores que se alinham com o governo. Por isso percebo aquela inquietação da “tropa de choque” na CPI. Eles próprios, suponho — já que ninguém me disse nada acerca disso — têm certa dificuldade de construir uma linha de defesa orgânica, coesa. Todos os depoentes alinhados ao governo geraram alguma perplexidade entre essa tropa de choque, como está sendo chamada pela imprensa. Se há uma assimetria hoje é essa. Ouvimos basicamente pessoas identificadas com o governo.

Como o senhor avalia o depoimento do ex-ministro Pazuello?
A maratona Pazuello contribuiu muito para a CPI e, talvez, precise de novos episódios. Ele foi com o nítido propósito de blindar o presidente da República e, para tanto, mentiu compulsivamente. Eu mesmo destaquei 15 inverdades detectadas naquele momento e esse número pode subir e muito com a análise da documentação. É até constrangedor você passar 15 horas e 19 minutos ali sendo pontualmente desmentido ao vivo por documentos, áudios, vídeos, postagens, publicações, atos formais do próprio ministério. Os telejornais, os jornais, o noticiário on-line demoliram, ponto a ponto, todas as falsidades ali declaradas. Enfim, não nos cabe opinar sobre a linha de defesa adotada pelas testemunhas. Estamos diante de uma nova cepa do negacionismo. Nega-se tanto, com tamanha intensidade e despudor que chegam a negar o próprio negacionismo. Surreal esse momento da vida nacional, onde a mentira alienante passou a ser um método. Lamentável, mas sigo acreditando na capacidade regeneradora da verdade. Um dos resultados visíveis desse obscurantismo é o lamentável número de mortes e as dores derivadas dessas perdas para milhões de brasileiros. Muitas mortes eram evitáveis. Uma lembrança que me ocorre é Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”.

Em relação ao presidente Jair Bolsonaro, o senhor pensa em convocá-lo ou pedir esclarecimentos sobre a participação dele?
Isso é relevante frisar, mais uma vez: a CPI, como sublinhei no pronunciamento após ser honrado com a designação para relatoria, não tem alvos pré-determinados. Não se trata de uma Comissão Parlamentar Inquisitorial, mas de investigação. Aliás, ela não investiga pessoas, mas fatos. Se, no decorrer da apuração, conseguirmos provas robustas para imputações, aí sim, elas serão formalizadas. Mas não estamos em um quadro de absoluta dramaticidade por flagelos divinos ou casualidade. Estamos com esses índices sepulcrais por ação, omissão, incompetência, desídia ou má-fé de alguém. A tragédia brasileira não é fruto do acaso. Ela é consequência de erros, muitos em várias esferas da administração pública. Nós temos, provavelmente, o único chefe de Estado que conspirou diariamente contra todas as orientações da ciência. Um obscurantismo medieval, macabro.

Está prevista para esta semana uma sessão de análise de requerimentos de quebra de sigilo e de convocações. Enquanto relator, qual sua prioridade para essa sessão?
O relator não tem nenhum tipo de ascendência ou precedência, exceto na ordem e no tempo para formular perguntas nos depoimentos. Sempre disse não serei um relator, mas um redator do sentimento da maioria do colegiado e das provas ali colhidas. Não sou relator da minha percepção, mas da apuração dos fatos. Todos os senadores conhecem profundamente, em suas áreas de atuação, os objetos sob investigação. Temos que avaliar o que já chegou, o que está por vir, já que todos os documentos se comunicam para conformar um quebra-cabeça. Cada peça é insubstituível para preencher as lacunas. Muitos documentos já são públicos e, na grande maioria, são documentos reveláveis. Isso é um dado relevante. Informações sigilosas são aquelas assim protegidas legalmente. Exemplo: Imposto de Renda, movimentação bancária, correspondências ou conversas privadas. Não é papel CPI ficar classificando ou categorizando documentos. Isso já está definido em lei. Não entendo, por exemplo, que comunicações do Ministério da Saúde, seja com quem for, possam ser consideradas sigilosas. Sou um adepto da publicidade, transparência dos dados públicos. Sou um crítico histórico da opacidade. Quando presidi o Senado, todos se lembram, implementei a transparência absoluta. Apenas dados protegidos por lei eram salvaguardados.

A CPI pode levantar mais provas sobre a atuação do governo na pandemia, mas já há uma série de pedidos de impeachment do presidente da República por atitudes negacionistas, como provocar aglomerações, declarações polêmicas sobre medicamentos e vacinas. Faltam provas ou condições políticas para o impeachment? O que segura o governo hoje?
Essa é uma indagação que inquieta a nação há tempos. Até aqui a CPI alcançou seu primeiro objetivo, que eu assinalei na abertura dos trabalhos. O maior mérito da CPI é existir e funcionar como antítese ao negacionismo. Desde a abertura dos trabalhos, milhões de publicações negacionistas foram apagadas, começamos a assistir na tevê orientações, cientificamente defensáveis, do Ministério da Saúde sobre a importância do isolamento, do uso de máscaras, da higiene pessoal e da imunização pela vacinação. Obviedades que precisaram ser demonstradas. Igualmente conhecemos, depois de um ano e três meses, um posicionamento técnico do Ministério da Saúde desaconselhando o uso de um medicamento ineficaz e as cornetas golpistas silenciaram. Esse primeiro efeito já está satisfatoriamente alcançado. Nessa perspectiva de reafirmar conceitos civilizatórios, resgates iluministas e humanos, a CPI foi pedagógica. Estamos todos os dias, em altíssima rotatividade, reafirmando a ciência e o respeito pela vida. O que perseguimos agora é exatamente as provas, muitas já existentes.

Alguns senadores têm batido muito na tecla de que é preciso investigar o desvio de recursos federais que foram enviados aos estados para o combate à pandemia. Quando a CPI colocará uma lupa sobre isso?
Certamente. Isso está no escopo do trabalho da comissão e não será lateralizado. Inicialmente é preciso ressaltar que sobre os estados onde existam indícios de impropriedades, já há procedimentos investigatórios instaurados. Muitos deles já foram requisitados para compartilhamento e, acredito, já devem ter chegado à comissão. Eles estão lá, em estágios diferentes da investigação, e serão, sim, objeto de atenção da CPI. Não há nenhuma intenção da CPI em blindar, proteger ou ocultar quem quer que seja. Mas, ali há um procedimento, democraticamente deliberado pela maioria, indicando prioridades, depoentes, diligências necessárias e quaisquer outras providências. Eu me subordino à vontade da maioria.

Os governistas dizem que o senhor tem “raiva” do presidente Jair Bolsonaro, até por causa da disputa antiga, para Presidência do Senado (em 2019) e que isso será destilado no relatório que o senhor apresentará. O que o senhor tem a dizer sobre isso?
Fui, honrosamente, presidente do Congresso Nacional em quatro oportunidades onde contei com a confiança dos senadores para exercer uma missão, sinceramente, acima do que jamais imaginei em minha vida. Hoje, posso ser considerado um senador experiente, vivido, que não traz consigo a sentença da amargura. Compreendo cada ciclo histórico explicado por sua própria circunstância. Reafirmo que o relatório final será resultado da apuração,da prova, jamais da convicção. Fui vítima disso e não contem comigo para sentenças pré-fixadas. Tenho devoção pela democracia, pelo sagrado direito da defesa e pela paridade de armas. Jamais reproduziria os métodos inquisitoriais de Tomas de Torquemadas. Eles ajudaram a deformar a democracia brasileira em um tempo muito recente. Não contem comigo para vinditas ou persecuções.

Por onde tem passado nos últimos dias, o presidente Jair Bolsonaro tem se referido ao senhor com palavras de baixo calão. Falou inclusive em Alagoas. Como isso lhe afeta?
Inicialmente é preciso registrar que a CPI, a depender da pesquisa, e são muitas e convergentes, tem aprovações sociais superiores a 75%, com elevados índices de audiência e interações no dia a dia. As avaliações sobre a atuação são encorajadoras e positivas.Na pesquisa do DataSenado, agora da primeira quinzena de maio, 86% dos entrevistados declararam que pretendem tomar a vacina. Os mesmos 86% dos entrevistados entendem que a vacina deveria ser obrigatória. Em um índice muito próximo, 85% dos brasileiros entendem que a divulgação de notícias falsas prejudica o combate à pandemia. Outro dado muito relevante. Para 92% da população os propagadores de notícias falsas deveriam ser punidos. Essa é a percepção da sociedade sobre a CPI e os números são eloquentes. A coloquialidade vulgar do presidente lembra muito o destempero do João Baptista Figueiredo. A audiência dele diária é reveladora e estamos apenas no começo.

Que cenário o senhor vislumbra para 2022? O senhor crê que ficará a polarização entre Lula e Bolsonaro?
Tenho defendido internamente a candidatura própria. A despeito de profecias fracassadas, o MDB segue sendo a maior força partidária do país há anos. A última eleição municipal reafirmou a grandeza do partido com o maior número de prefeitos e vereadores. Uma capilaridade que não pode ser menosprezada. Entendo, conceitualmente, que no primeiro turno, as maiores legendas deveriam apresentar seus candidatos, ideários e propostas. Isso fortalece a democracia representativa. A discussão de segundo turno, amparada em pesquisas, acaba por desvirtuar um pouco o modelo e transformando a eleição em uma espécie de turfe, com apostas concentradas no hipotético vencedor.

A cúpula do MDB está hoje muito mais próxima de Lula do que qualquer candidatura própria à Presidência da República, dizem que inclusive o senhor seria um torcedor da volta do ex-presidente. Isso não atrapalha seu trabalho enquanto relator, isto é, alguém que deveria guardar imparcialidade?
Como já disse antes, sou defensor da candidatura própria no MDB e, também como já afirmado, não serei um relator das minhas convicções, mas das provas reunidas durante a investigação. Terei coragem para inocentar os que merecerem e dignidade para denunciar eventuais responsáveis. Minha isenção e imparcialidade são premissas inarredáveis, inegociáveis. No futuro, minha condição de relator jamais será objeto de arguições de suspeição.

Sobre a conversa de Lula com Fernando Henrique Cardoso, na casa do ex-ministro Nelson Jobim, como o senhor vê essa aproximação entre dois partidos que eram adversários ferrenhos? Em que isso afeta a relação de Lula com o MDB?
Nos últimos tempos fomos, infelizmente, desacostumados aos conceitos de civilidade, respeito e tolerância. Vejo o encontro de maneira absolutamente natural. Demonstração eloquente de que é possível a convivência pacífica entre pessoas que pensam de maneira divergente, sem que nenhum dos lados queira exterminar o outro. Esse fundamentalismo, essa jihad política, não pertence à nossa sociedade. Obviamente não se trata de uma aliança, mas do encontro de pessoas que prezam a democracia. Eu, muito modestamente, só tenho que parabenizar os dois e também o ministro Nelson Jobim, amigo de longa data, por ter incentivado um encontro tão pedagógico.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, seu adversário no estado, está cada vez mais próximo do governo. Isso pode comprometer o seu grupo político em Alagoas?
Eu entendo que, em algumas circunstâncias, as relações políticas estaduais se sobrepõem às discussões nacionais. Em algumas ocasiões há uma prevalência local, outras não. Sem fugir à pergunta, é historicamente inegável que a região Nordeste tem dado votos conhecidos. Na última eleição presidencial, o Nordeste foi a única região onde Fernando Haddad venceu, com quase 70% dos votos. No meu estado, por exemplo, foram 60% dos votos válidos. Não costumo me esquivar, mas é temerário fazer profecias políticas. Há muitos oráculos trincados por aí. Em Alagoas, o que posso atestar é que venho contando com a confiança dos eleitores há quatro mandatos. Isso fala por si. O MDB em Alagoas, como no resto do país, faz uma política de alianças, inclusive. Todos que possam colaborar para melhorar o estado, ajudar os alagoanos é sempre bem-vindo.

O senhor é próximo do governador Ibaneis Rocha (MDB) e há na CPI pedidos para esmiuçar os gastos com insumos, por exemplo os testes, objeto da Operação Falso Negativo. Como fica essa relação entre governador e relator?
O MDB tem uma característica única. Ele nasceu de uma frente partidária durante a ditadura, onde estavam alojados comunistas, maoístas, socialistas e até mesmo liberais. Este traço permanece até hoje e eu acho democraticamente saudável. Salvo engano, é o único partido que permite a divergência estatutariamente. Por isso há muitas correntes ideológicas que se respeitam mutuamente e há uma convivência respeitosa entre pensamentos divergentes. A síntese da democracia é exatamente essa: tolerância e respeito à divergência. Desse debate rotineira, na sociedade e na vida partidária, nascem as melhores formulações para o país.

Desde sempre, o povo reclama que não é ouvido pelos seus representantes no Congresso. Porém, a CPI chamou a atenção. A CPI é o novo Big Brother? O senhor pede perguntas aos internautas. É uma tentativa de se aproximar do cidadão ou apenas um novo palco político?
Eu disse isso. A CPI é um momento raro do Congresso para se reconectar com a sociedade, no conteúdo e na forma. Confesso que, há bem pouco tempo, era completamente analógico. Mas hoje estou muito atento a essa nova realidade de redes, digitalização, interação instantânea e respostas rápidas. Sei que o parlamento, como instituição, pela complexidade intrínseca do modelo, não tem como responder rapidamente. Mas nós, como parlamentares, sim. Temos de interagir e dar satisfações rotineiramente e ampliar os canais de participação social. E isso, respeitando outros entendimentos divergentes, não é via enquetes e sondagens. É abrir mesmo para participação, e garanto que chegam contribuições muito qualificadas. Só para resgatar como advogo essa democracia direta, sempre fui um incentivador dos plebiscitos e referendos. Propus um dos mais importantes da história recente, do qual não me arrependo, sobre a proibição da venda de armas e munição para população. Recordo com tristeza que perdemos. Mas isso não me desestimula. Quanto mais a sociedade for ouvida, mais legitimado estará o Parlamento.