A verdade vos alcançará
Nas guerras, como se sabe, a primeira vítima é a verdade. E, ao longo da semana, não foram poucas as vezes que ex-titulares de postos estratégicos no enfrentamento da pandemia tergiversaram de perguntas incômodas ou simplesmente negaram a realidade dos fatos na CPI da Covid. Para Eduardo Pazuello, por exemplo, duas autoridades da República — o presidente e seu ministro da Saúde — irem a público justificar o cancelamento da compra de 46 milhões de doses de vacina com o bordão “um manda e outro obedece” constitui apenas uma brincadeira. Tratava-se de uma “posição de internet”, no linguajar de Pazuello. Segundo ele, o disparate em nada interferiu no andamento das negociações entre o governo federal e o Instituto Butantan. Nenhuma palavra de arrependimento sobre um dos episódios mais lamentáveis da tragédia brasileira chamada covid-19. Nada a declarar sobre a cizânia que se arrastou por meses — e que continuou no depoimento do ex-ministro — em torno da vacina responsável por imunizar oito de cada 10 brasileiros.
Há mais, muito mais. Em seu raciocínio tortuoso, Pazuello ignora a responsabilidade que recai sobre uma autoridade perante a opinião pública. É espantoso o sofisma, apresentado com naturalidade pelo general, de que as declarações do presidente não guardam qualquer relação com as ações (que ações?) do Ministério da Saúde. Ou, em outras palavras, as mensagens disseminadas na internet não produzem qualquer consequência, são apenas “lacrações” e imagens para animar a militância bolsonarista. A teoria de Pazuello só não é mais estapafúrdia porque, de fato, encontra respaldo na lógica alienante das redes sociais. Durante anos, as plataformas digitais se mostraram terreno fértil para políticos ganharem popularidade, votos e eleições com mentiras, ofensas, delírios e insurreições. Na maior democracia do mundo, um presidente chegou a ser eleito assim e por pouco não ficou mais quatro anos na Casa Branca. Pazuello não está de todo errado quando afirma que a mensagem “um manda e o outro obedece” serve para entreter a plateia bolsonarista e não para ser levada a sério. Para muitos, e particularmente para este governo, a “liberdade” consiste em dizer o que for conveniente — especialmente mentiras — a fim de atrair a atenção de desavisados ou de distrair a opinião pública de problemas concretos.
Ernesto Araújo seguiu a mesma linha adotada pelo ex-colega da Saúde de negar o negacionismo. Disse, sem piscar, que jamais causou mal-estar contra a China, apesar de haver denunciado o perigo do “comunavírus” e de ter investido contra o embaixador chinês em defesa de Eduardo Bolsonaro. Ante tanta inoperância do Itamaraty, não por acaso abriram-se outros canais de diálogo entre autoridades brasileiras e a China. Na quinta-feira, o chefe da missão chinesa anunciou aos governadores a chegada de mais insumos para a fabricação de vacinas no Brasil. Ao mentir descaradamente na CPI e argumentar que o Itamaraty apenas seguia as recomendações do Ministério da Saúde, Araújo confirmou sua vocação: apequenar uma instituição antes reconhecida pela excelência na política externa brasileira.
Ainda se ouvirá muita mentira nos próximos depoimentos da CPI. Mas, em algum momento, os relatos precisarão ser confrontados com a realidade dos fatos, a fim de que ela seja restabelecida. Por enquanto, a situação se assemelha a uma cena de delegacia. Um crime foi cometido, com 440 mil vítimas. As testemunhas, chamadas para depor, se esquivam de perguntas comprometedoras. Ninguém sabe, ninguém viu, todos procuram alegar um álibi e expor suas boas intenções. Mas está claro que esse expediente tem dia e hora para acabar. Apesar das artimanhas e do contorcionismo dos depoentes, os senadores da CPI e a sociedade brasileira estão atentos às numerosas contradições elencadas até aqui. Por enquanto, os parlamentares não dão sinais de que pretendem recuar na busca dos responsáveis pelo morticínio. Em nome do sofrimento de milhões de brasileiros, eles avisam aos negacionistas: a verdade vos alcançará.