O advogado Felipe Santa Cruz está no último ano na presidência da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), entidade que, historicamente, nunca se limitou a defender os interesses da categoria. A OAB tem um longo histórico de defesa das liberdades democráticas, particularmente no período da ditadura militar. Sob os ares da redemocratização, atuou em episódios relevantes. Em 2016, protocolou na Câmara dos Deputados pedidos de impeachment contra Dilma Rousseff.
A petista se retirou do Palácio do Planalto, mas a polarização política jamais se arrefeceu. E a pressão por um impeachment retornou, desta vez voltada para Jair Bolsonaro, principalmente em razão dos desmandos do governo federal no enfrentamento da pandemia. Os problemas entre a OAB e Bolsonaro, entretanto, começaram ainda em 2019, quando o chefe do Executivo atacou a memória do pai de Felipe, Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, desaparecido na ditadura militar.
“(Bolsonaro) não esconde a tendência golpista”, afirma Felipe Santa Cruz nesta entrevista ao Correio. Apesar do profundo desapreço pelo presidente da República, o chefe da OAB afirma que a solução, desta vez, não passa pelo impeachment. O melhor é deixar que as urnas pronunciem o veredito. “Não é aceitável que toda presidência termine em impeachment. Eu vejo muita dificuldade no processo de impeachment neste quadro atual”, frisa o presidente da OAB.
Mais de uma centena de pedidos de impeachment contra Bolsonaro repousam na Câmara dos Deputados. Os requerimentos se acumulam desde a gestão do ex-presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), assim como na atual, de Arthur Lira (PP-AL). O assunto é frequente em Brasília, mas Santa Cruz segue a linha de muitos atores na capital da República: não há clima para um terremoto político dessas proporções.
A Ordem, que no passado pediu a cassação dos ex-presidentes Fernando Collor e Dilma Rousseff, elaborou uma comissão de juristas que analisaram as ações de enfrentamento da pandemia. O colegiado concluiu pelo cometimento de crime de responsabilidade pelo presidente, mas o relatório ainda não foi votado. E, segundo Santa Cruz, não há consenso.
Dentre outros assuntos, o presidente da OAB comenta possíveis planos políticos, que só serão confirmados por ele depois que deixar a presidência da entidade, no começo do próximo ano. Mas o nome dele já circula para possível disputa pelo governo do Rio de Janeiro. Santa Cruz não descarta a possibilidade de se candidatar. "Política é missão", afirma.
Confira a entrevista completa:
A Comissão de Juristas para Análise e Sugestões de Medidas de Enfrentamento da Pandemia do Coronavírus apontou cometimento de crime de responsabilidade pelo presidente. Mas esse relatório ainda não foi votado. Como está essa situação?
Está na mesma situação em que está toda a sociedade, o Congresso Nacional. Estamos todos impactados por essa pandemia, pelas dificuldades de levar um processo político e jurídico que é de séria gravidade. Não é aceitável que toda presidência termine em impeachment. Tem que se observar o aspecto jurídico, além da política que deve estar presente nesse processo, que tem esses dois pilares. Eu vejo muita dificuldade no processo de impeachment no quadro atual. Agora, não vejo dificuldade da Ordem continuar a discussão do que cabe a ela nesse primeiro momento, que é do aspecto jurídico. Para isso, criei uma comissão de notáveis, com colegas de absoluto destaque. E eles entenderam que há, sim, crime de responsabilidade; há sim crimes comuns e há, sim, crime contra a humanidade. Esse é um documento forte. Eu dei ciência desse documento a todo o sistema da OAB, e ele vai seguir os trâmites. Obviamente, os trâmites cabíveis que não dependem só de mim, dependem do sistema OAB.
Há divergências?
Existe uma dúvida da conveniência. Há uma preocupação de todos com o instituto do impeachment, e eu volto a dizer, sou um democrata. O presidente foi eleito. Com todos os erros que vem praticando, é o presidente da República, e essa discussão é muito mais profunda. Há pessoas que pensam que ela já deveria ter sido feita; e há outros que acham que o ideal é que a situação se encerre com a eleição, com a vontade popular aprovando ou não o que ele fez. Então, são todas posições aceitáveis.
E qual é sua posição?
Eu sou o maestro disso, tenho que ouvir todo mundo e, dentro do possível, construir consensos em termos de andamento. Do ponto de vista jurídico, o documento que foi elaborado pela comissão é muito duro. Eu remeti esse documento à CPI da Covid. E remeti a todo sistema OAB, porque é uma peça jurídica muito sólida e muito dura.
Qual o trâmite interno?
Foi para a comissão de estudos constitucionais e vai também ao colégio de presidentes. Depois desses andamentos, com os pareceres dessas instâncias, vamos estudar e conversar sobre a conveniência ou não da pauta no conselho no momento apropriado.
Por que o senhor não vê momento para impeachment agora?
Porque eu já fui líder estudantil nos anos 1990, fui presidente de Ordem (no RJ) no impeachment de Dilma Rousseff e digo que a população brasileira está tratando de sobreviver. Ela não tem nem capacidade física e mental para se mobilizar, não pode ir às ruas. Não há ambiente político para o impeachment por conta desse drama.
Vamos esperar a pandemia passar?
Estamos no meio de um incêndio, de uma tragédia única, humanitária, que ficou mais aguda a partir da incompetência e irresponsabilidade do presidente da República e seu governo, e continuo achando que é muito difícil fazer essa punição, responsabilização, durante esse incêndio. Continuo achando que o ideal seria apagarmos o incêndio. Mas como o incêndio vai demorando no tempo, começa a aparecer movimentos que entendem que é hora, sim, de responsabilizar quem tem responsabilidade. Acho que o Congresso deu um passo importantíssimo, com o nosso apoio, com a instauração da CPI.
O senhor não é favorável, então, ao encaminhamento de um pedido de impeachment no momento por parte da Ordem?
Neste momento, com essa conjuntura político institucional, é um documento inútil, por ser mais um. Na próxima semana, pode não ser. E eu não me permito assinar, enquanto presidente da Ordem, documentos inúteis. Há mais de 100 pedidos de impeachment sobre a mesa do presidente Artur Lira, e não há ambiência política, segundo ele, segundo a maioria do Congresso, para esse trâmite. Se esse momento político mudar, o pedido de impeachment da OAB certamente será o mais relevante.
O senhor apresentou, como presidente da Ordem, um pedido à PGR que denuncie Bolsonaro no STF por crime de conduta na pandemia. Acha que o presidente vai ser responsabilizado pela forma como conduziu as ações durante a pandemia?
Esse documento da PGR foi uma decisão unânime do Conselho Federal da Ordem. Nós seguimos cobrando do procurador-geral que assim o faça. Há elementos para isso apontados na peça.
Mas o que a OAB pretende com essa peça?
Cumprir sua missão legal e constitucional. Exige da OAB que ela não se omita numa discussão tão grave e cabe a autoridade, ao MPF, também cumpra ao seu papel legal e constitucional.
O procurador-geral está sendo omisso?
Prefiro esperar que a apreciação dele desse nosso requerimento e a partir dali tomar as medidas cabíveis. Há algumas discussões nossas sobre ações subsidiárias, algumas discussões nossas sobre outras medidas. Prefiro aguardar o despacho do doutor Augusto Aras.
Acredita que o presidente será responsabilizado?
Acredito que sim. Boa parte desses mortos são de responsabilidade direta da conduta irresponsável, criminosa, do presidente da República durante essa pandemia. Ele fez campanha pública contra as vacinas, desmontou o Ministério da Saúde durante a pandemia, afastou médicos, militarizou o ministério, deu uma série de exemplos de falta de civilidade, compreensão e empatia. Esse conjunto de responsabilidades, ilegalidade, incompetências, terá um preço. Se será da história, da lei, da Constituição, do impeachment, a história vai dizer. Mas desse julgamento, Jair Bolsonaro não escapará. E o julgamento da história, para mim, o colocará como o pior presidente da República que o Brasil já teve. Perto de Bolsonaro, Médici e Costa e Silva são estadistas.
Maia foi omisso ao não aceitar nenhum pedido de impeachment? E Lira?
Tenho certeza que Rodrigo Maia não foi omisso. Ele fez o melhor que poderia fazer em defesa da democracia. Maia foi um democrata e foi importantíssimo na resistência deste primeiro momento. O projeto do governo foi se demonstrando no dia a dia antidemocrático. Acho que essa justiça histórica tem que ser feita. Em relação ao Lira, ainda há pouco tempo para fazer essa avaliação. Acho que ele deve dar, sim, sinais desse protagonismo, como fez Rodrigo Pacheco com a CPI. Essa independência, esse protagonismo, acho que chegará a hora do presidente Arthur Lira demonstrar. Talvez seja com a CPI do meio ambiente, o momento de Lira demonstrar que ali também impera a independência.
Há um momento ideal para impeachment?
O impeachment no Brasil vem sendo distorcido há muito tempo, pela direita, pela esquerda, pelo centro. Todos os presidentes da redemocratização tiveram uma série de pedidos apresentados, nenhum escapou. Isso é uma rotina do Legislativo. Agora, impeachment precisa de condições jurídicas, essas que estamos apreciando na OAB, e precisa de ambiente político — insatisfação aguda da sociedade com os rumos do seu governo. Isso não existia na gestão do Maia ainda.
E agora, existe insatisfação aguda?
Eu acho que cresce. Ao menos os índices mostram. Mas não há também condições do povo brasileiro fazer o que tradicionalmente faz nesses momentos de insatisfação, que é ir às ruas. Talvez o presidente Bolsonaro seja o maior beneficiado politicamente pela pandemia que ajudou a crescer no país em que ele semeou como absolutamente danosa, na medida em que o povo não pode estar nas ruas. Quando (o povo) puder, provavelmente estará (nas ruas).
É melhor deixar essa questão para o processo eleitoral?
Falta um ano e meio para eleição. E a eleição no Brasil custou vidas, custou sofrimento de muita gente que foi torturada lutando por essas eleições diretas. Continuo acreditando que o melhor caminho para repactuar uma nação é o caminho das urnas. Todos vão se reencontrar para tomar suas novas decisões. O importante é que deste processo eleitoral saia o fortalecimento da própria democracia, que nele fique absolutamente contrastado quais são os candidatos a favor do estado democrático de direito e aqueles que são contrários. Porque nós sofremos grandes riscos nesses anos que passamos.
Preocupam as declarações do presidente de usar as Forças Armadas contra governadores, por causa das medidas restritivas?
O presidente, na sua permanente busca de culpados que não sejam ele próprio, rompe pacto federativo, rompe princípios constitucionais, como a própria visão municipalista, tenta transferir a estados e municípios essa responsabilidade. Os riscos e os ataques do presidente à democracia são cotidianos. O presidente usa esse ataque à democracia, ainda, como cortina de fumaça, para se eximir de fazer o que deveria estar fazendo, que é trabalhar para resolver os problemas do povo.
Bolsonaro é uma ameaça à democracia?
Claro que é. Ele não esconde a tendência golpista. Não esconde que está esperando o momento oportuno para o golpe. O que ele não tem é apoio das Forças Armadas, nem da sociedade, e não existe golpe sem isso. Então, ele não tem condições de dar o golpe, mas que ele teria vontade de dar um golpe, não tenho dúvida nenhuma.
Se Bolsonaro perder a disputa eleitoral, teme alguma reação por parte dele?
Eu não temo por golpes, mas por atos violentos. Eu teria cautela e cuidado no processo eleitoral com atos de violência que saiam de alguns setores, em especial dessas milícias. Eu não seria inocente de achar que ele não vai resistir ou buscar resistência a sair da presidência em caso de derrota.
Lula está desimpedido para as eleições de 2022. Pesquisas mostram ele como o maior adversário de Bolsonaro. Ele tem seu apoio?
Não cabe a mim essa análise, como presidente da Ordem. O que eu posso me manifestar é: todos os presidentes, desde a redemocratização, eram democratas. Tomara que volte à presidência da república, pela vontade popular, um democrata. Torço pela vitória de qualquer democrata, e não votarei em Jair Bolsonaro.
O nome do senhor tem sido levantado como candidato ao governo do Rio em 2022. Está disposto?
Eu acho que meu nome vem sendo lembrado pelo papel que eu exerci na presidência da Ordem, que é muito mais responsabilidade da força da OAB do que minha. Eu fico feliz com a lembrança. Como disse, eu não criminalizo a política. É na política que está a saída dos nossos problemas. Aqueles que apostam contra a política o fazem por oportunismo, por tentar a ruptura, então eu acredito na recuperação da política, no protagonismo da política brasileira. Agora, essa decisão eu só tomarei a partir de fevereiro.
Então o senhor não descarta.
Não descarto. Pode ser que se exija de mim essa missão política. Política é missão. De vontade própria, eu não tenho. Minha vontade é terminar meu doutorado, retomar minha carreira acadêmica, cuidar do meu escritório, da minha família. Tudo isso foi impactado nesses anos de presidência da OAB.
O impeachment da ex-presidente Dilma fortaleceu outros atores políticos e culminou na eleição de Jair Bolsonaro para o Palácio do Planalto. A OAB errou ao se posicionar a favor do impeachment naquela ocasião?
Como presidente da Ordem, me recuso a fazer essas análises. Eu tento sempre entender o momento de cada presidente da OAB. Prefiro olhar para frente e afirmar que parte desse processo político gerou uma criminalização total da política, quando nós sabemos que há muita gente séria na política. Parte desse processo fragilizou muitos partidos políticos, quando nós sabemos que não há, ainda, outra forma de organização e representação da sociedade na política que não sejam os partidos. Parte desse processo provocou essa sensação de frustração da população brasileira, gerando esse voto de protesto que levou o governo com viés autoritário à presidência da República. É um processo que a história vai julgar. Acho que a OAB foi parte desse processo. Cabe a ela fazer crítica e autocrítica com o tempo. Mas essa, nós ainda não temos o distanciamento e análise necessária para fazermos.