Nas entrelinhas

Contradições amazônicas

Esta semana, o presidente Jair Bolsonaro enviou uma carta ao colega dos Estados Unidos, Joe Biden, com a intenção de mostrar que, finalmente, o governo brasileiro pretende executar uma política ambiental digna de nome. No documento, Brasília se compromete a cumprir duas metas: eliminar o desmatamento ilegal até 2030 e alcançar a neutralidade climática até 2060, com possibilidade de antecipação para 2050. Trata-se de uma necessária correção de rumo após a ascensão do democrata à presidência dos Estados Unidos, país de importância fulcral para os rumos da agenda ambiental no mundo, e a vexatória gestão de Ernesto Araújo à frente do Itamaraty. No esforço de aproximação com a nova administração na Casa Branca, Bolsonaro espera estabelecer melhores bases de diálogo com a comunidade internacional. Não foi por acaso que o presidente ouviu os ministros Carlos França (Relações Exteriores), Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Tereza Cristina (Agricultura) para divulgar um manifesto que busque restaurar a combalida imagem do Brasil no contexto internacional.


Artífice da Cúpula de Líderes sobre o Clima, marcada para os dias 22 e 23, o chefe da Casa Branca já emitiu sinais suficientes de que uma carta de intenções não bastará para resgatar o passivo ambiental acumulado pela gestão Bolsonaro desde 2019. No último dia 11, o embaixador norte-americano no Brasil, Todd Chapman, foi direto ao ponto: se o Brasil quiser o apoio dos Estados Unidos para ingressar na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), precisará demonstrar real compromisso com a preservação da Amazônia, o combate às queimadas, o enfrentamento da grilagem de terras e outras ações fundamentais em favor do meio ambiente. A pressão norte-americana não está restrita à Casa Branca. Um grupo de 16 senadores democratas, entre os quais a estrela Bernie Sanders e o presidente da Comissão de Relações Exteriores, Bob Menendez, exortou o presidente Biden a condicionar qualquer apoio ao governo brasileiro a uma redução inequívoca dos ataques ao patrimônio amazônico.


Convém lembrar que a promessa de uma política ambiental séria, por parte do governo brasileiro, também constitui, ainda que indiretamente, uma sinalização para a União Europeia, outro ator importante no debate global sobre meio ambiente. Permanecem intactas as duras críticas direcionadas por membros pelo bloco econômico à questão amazônica. Áustria e França estão à frente da ala mais insatisfeita com os rumos da gestão ambiental no Brasil. Ambos os países posicionam-se claramente contrários à ratificação do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul, uma iniciativa cuja negociação durou duas décadas e foi concluída em 2019.


Como se vê, o Brasil ocupa posição desconfortável quando vêm a debate questões globais como sustentabilidade. A carta de Jair Bolsonaro constitui, portanto, uma tentativa de reconstruir a credibilidade brasileira ante a comunidade internacional.


Mas há contradições de proporções amazônicas que minam as boas intenções exibidas pelo Palácio do Planalto. E elas apontam para a autoridade de maior responsabilidade sobre a preservação do patrimônio ecológico nacional: Ricardo Salles. O ministro que ganhou notoriedade ao defender a passagem da “boiada” sobre a legislação ambiental voltou aos holofotes em uma situação inusitada, que já provocou desdobramentos políticos e pode ter consequências judiciais. Cheira mal o afastamento do delegado Alexandre Saraiva da superintendência da Polícia Federal no Amazonas, um dia após ele acusar, em notícia-crime enviada ao Supremo Tribunal Federal, o ministro Ricardo Salles e o senador Telmário Mota (Pros-RR) de agirem “no intento de causar obstáculos à investigação de crimes ambientais e de buscar patrocínio de interesses privados e ilegítimos perante a administração pública”. Na queda de braço entre a lei e a política, está em jogo a maior apreensão de madeira ocorrida no Brasil — um abate de 65 mil árvores, cuja legalidade permanece sob suspeita.


Quer os bolsonaristas gostem ou não, pandemia e meio ambiente afetam profundamente a imagem do Brasil no exterior. Ao negligenciar uma atuação inequívoca nessas duas frentes, o governo Bolsonaro deixa o país em posição delicada. Mais do que nunca, é preciso superar a pecha de epicentro global da covid-19 e eldorado de grileiros e promotores de queimadas. Essas tragédias em curso representam enormes óbices para uma melhor inserção do Brasil na comunidade internacional, com evidentes prejuízos de ordem sanitária, ambiental, política e econômica.