Uma resposta das instituições
A reação iracunda do governo de Jair Bolsonaro após o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo, determinar a abertura da CPI da Covid no Senado recordou-me a frase do ex-ministro Eduardo Pazuello. “Para que essa ansiedade, essa angústia?”, dizia o general no fim do ano passado, quando o país se afligia pela paralisia no Programa Nacional de Imunização. Naquele 19 de dezembro de 2020, o Brasil contabilizava quase 183 mil mortos pela covid. Algumas semanas depois, o país assistia, petrificado, à agonia de Manaus. Ainda estão vivas na memória nacional as cenas de desespero na porta dos hospitais da capital amazonense, com famílias em busca de tanques de oxigênio. A tragédia, uma das mais emblemáticas na calamidade pandêmica brasileira, resultou na morte de pelo menos 31 pessoas. A ansiedade pela vacinação, incompreendida pelo então ministro da Saúde, só começaria a ser aplacada em 17 de janeiro, praticamente um mês depois da frase do militar. Aos governistas aflitos com a ordem do Supremo, convém devolver a pergunta: “Para que essa angústia?”
Com quase 350 mil vidas perdidas, um sistema de saúde em colapso e uma profusão de impactos que afetará uma geração de brasileiros, a pandemia da covid-19 bateu forte nas instituições nacionais. O avanço devastador da crise sanitária levou os Poderes da República a se posicionarem e, no caso relativo à CPI da Covid, produziu um embate político de considerável monta. Barroso manifestou-se provocado por um mandado de segurança apresentado por partidos com representação no Senado. Do ponto de vista formal, a decisão do magistrado não causa surpresa. Ele entendeu que estão preenchidos os requisitos para dar início ao inquérito parlamentar: um número suficiente de assinaturas favoráveis à abertura de uma CPI; um objeto a ser investigado — a saber, a conduta do governo federal no enfrentamento da pandemia da covid-19 —; e um prazo determinado para a execução dos trabalhos. Conforme asseverou Barroso, o argumento de que o gravíssimo estágio da crise sanitária seria um impedimento para a realização dos trabalhos do colegiado não é constitucional, pois segue uma “lógica estritamente política que, no caso em exame, não pode prevalecer”. Para conferir um caráter institucional ao seu voto sobre a CPI, o ministro Barroso teve a cautela de pedir a manifestação do plenário sobre a matéria. Presume-se, portanto, que os demais integrantes do Supremo apontem outras nuances sobre o imbróglio e confirmem ou refutem a iniciativa de Barroso.
Note-se que o episódio sobre a CPI da Covid veio em sequência a outra rumorosa participação do Supremo em relação à pandemia. A eloquente confirmação da Corte em favor da prerrogativa de estados e municípios na adoção de medidas sanitárias contra o avanço do vírus encerrou a controvérsia relativa à presença de fiéis em igrejas. De forma inequívoca, o Supremo estabeleceu a primazia do direito à vida sobre outras liberdades, como a de ir e vir e de manifestação religiosa. O antagonismo entre os ministros Nunes Marques e Gilmar Mendes, alimentado por mensagens desconectadas da realidade pandêmica por parte da Procuradoria-Geral da República e da Advocacia-Geral da União, exigiu da instância máxima do Judiciário o restabelecimento da ordem das coisas.
É preciso entender que o movimento das instituições da República, em particular do Supremo Tribunal Federal, é consequência natural do agravamento da pandemia no Brasil. O governo está 12 meses atrasado no discurso de união nacional. Em razão de uma sequência impressionante de equívocos, o país foi progressivamente sendo devastado por sucessivas ondas de incompetência, politização, má-fé, inépcia e negacionismo. Mais cedo ou mais tarde, chegaria a hora de prestar contas à sociedade brasileira ante um desastre de tamanhas proporções. A crise sanitária alcançou tal gravidade no Brasil, que não se limita mais ao colapso na saúde nacional, à profunda paralisia econômica, à devastação na alma e na saúde mental dos brasileiros. A covid transformou o Brasil em ameaça global — e não se trata de figura de retórica.
Não é mais possível agir como se tudo fosse apenas resultado de uma fatalidade. Ou, como foi dito durante a semana, “não vamos chorar o leite derramado” e “vamos olhar para a frente”. Com 4 mil mortes diárias em razão do vírus, é urgente procurar os responsáveis por tal hecatombe, a fim de impedir novas tragédias. São medidas de contenção necessárias para os gestores que têm ou tiveram por dever enfrentar a pandemia, ou, em um sentido mais amplo, para todo brasileiro que contribuiu para esse cenário desolador.