Em meio ao agravamento da pandemia de covid-19 no Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) terá de se posicionar sobre uma questão que envolve fé, ciência e justiça. No feriado de Páscoa, a decisão de um integrante da Corte, ministro Nunes Marques, entrou em choque frontal com a política de enfrentamento contra a pandemia conduzida pelo prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD). O magistrado autorizou os cultos presenciais na capital mineira, respeitando-se certas medidas sanitárias. Inicialmente, Kalil disse que não cumpriria a decisão, criando um enfrentamento institucional com a mais alta Corte de Justiça do país. Depois, teve de recuar. Ontem, a controvérsia se agravou, com mais manifestações provenientes do Supremo, recurso judicial da prefeitura mineira, apelo da Frente Nacional de Prefeitos e declarações de políticos e da sociedade civil.
A decisão, em caráter provisório, do ministro Nunes Marques de permitir a abertura de templos religiosos e igrejas não encontrou eco entre outros integrantes da Corte. Há quem defenda que a discussão do tema no plenário do tribunal. Nos bastidores do Supremo, há a leitura de que o posicionamento de Nunes Marques vai na direção oposta ao entendimento da Corte firmado em 2020. No ano passado, os ministros decretaram que governadores e prefeitos têm “responsabilidade concorrente” para estabelecer medidas nos seus estados e municípios. Por extensão, a decisão de Nunes Marques prejudicaria o combate à crise sanitária por tolerar a formação de aglomerações.
“Para tranquilizar a população, urge que esse tema seja levado ao pleno, que é o verdadeiro Supremo. A ser considerado processo objetivo para desse um implemento de tutela de urgência, há necessidade de seis votos. O Supremo não está em mês de férias coletivas e nem do recesso. O STF está em pleno funcionamento”, ponderou o decano Marco Aurélio Mello, ao Correio.
De acordo com o ministro, diante do atual estágio da pandemia no Brasil, que já tirou a vida de mais de 330 mil pessoas, o Judiciário não deveria tomar decisões que estejam na contramão do que é indicado para combater a disseminação da covid-19. Além disso, Marco Aurélio opinou que essa determinação deveria partir do Poder Executivo, e não de um tribunal. Nunes Marques atendeu a um pedido de liminar apresentado pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos.
“O isolamento, a meu ver, não é extravagante. A maior vacina que se pode ter é o isolamento. Nós ainda estamos engatinhando (na imunização), com apenas 9% da população com a primeira dose tomada. É muito pouco ante a pandemia. Não chegamos, ainda, ao pico, e vamos abrir? Logo o Judiciário pagando esse preço? Há governos no país, e o Judiciário não governa. O Judiciário não é o Executivo”, frisou Marco Aurélio.
“Vamos ter temperança, vamos marchar com cautela. Já temos mais de 300 mil mortos. Será que isso não assusta? Será que isso não alerta quanto à necessidade de guardar-se? Se isso não sinaliza, eu não sei o que pode sinalizar. O maior altar que nós temos é o nosso lar. Rezemos em casa. Por que viabilizar ajuntamento de pessoas? Penso que a ficha do brasileiro ainda não caiu” acrescentou o magistrado.
“É saúde pública”
O posicionamento de Marco Aurélio, contrário à decisão de Nunes Marques, não é o único. A Frente Nacional de Prefeitos, em nota, fez um apelo para que o plenário do STF ou o presidente da Corte, Luiz Fux, se manifeste. Alexandre Kalil, por sua vez, ingressou com recurso no tribunal. Ele foi intimado por Nunes Marques e pela Advocacia-Geral da União a cumprir a decisão “com máxima urgência” após divulgar nas redes sociais, no sábado, que não respeitaria a ordem do ministro do Supremo — no final das contas, Kalil executou a norma.
“Por mais que doa no coração de quem defende a vida, ordem judicial se cumpre. Já entramos com recurso e aguardamos a manifestação do presidente do Supremo Tribunal Federal”, escreveu o prefeito de BH em uma rede social. O recurso ao STF foi apresentado pela Procuradoria-Geral do município. “A decisão monocrática causa tumulto à ordem pública, em seu sentido jurídico, porque afronta o plenário do Supremo Tribunal Federal ao impedir os entes federados de adotar as medidas para enfrentamento à pandemia e porque decide sem nenhum embasamento técnico, mesmo havendo consenso científico do elevado risco de contaminação em igrejas”, argumentou a prefeitura.
O presidente da Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), Jonas Donizette, se posicionou na mesma linha. “Não é uma questão de fé, é uma questão de saúde pública, em que o plenário do STF já definiu que existe competência dos prefeitos para tomar decisões no sentido de proteger a população, seja em um ambiente religioso ou comercial, para que possamos conter a proliferação do vírus até que possamos vacinar mais pessoas. Por isso, estamos ingressando com uma reclamação ao presidente do STF para que ele faça uma dirimição dessa dúvida, se vale a decisão do pleno ou do ministro Nunes Marques”, disse Donizette.
Apesar da pressão para uma resposta única de Fux, interlocutores do Supremo afirmam que o presidente do STF tende, no momento, a levar o assunto ao plenário, especialmente para evitar indisposição com o ministro Nunes Marques. Segundo fontes, Fux evitou a suspensão da decisão do colega ainda no domingo de Páscoa para não criar uma crise no Tribunal. A tendência é de que o entendimento de Nunes Marques seja revisto no pleno. O despacho incomodou os pares por representar uma afronta à decisão do colegiado e colocar em risco milhões de fiéis em todos os municípios.