Pandemia

Covid-19: governo quer que militares vacinem a população em quartéis

Presidente Bolsonaro e os ministros Braga Netto e Marcelo Queiroga anunciam plano de convocar militares para aplicar vacinas. O problema, no entanto, é a capacidade de imunização ainda ociosa, em razão da oferta escassa de doses para o país

Sarah Teófilo
Bruna Lima
postado em 04/04/2021 06:00
 (crédito: Reprodução/ YouTube )
(crédito: Reprodução/ YouTube )

Em uma semana com intensa crise entre o Palácio do Planalto e militares, após o presidente Jair Bolsonaro demitir o general Fernando Azevedo do Ministério da Defesa, e os três comandantes das Forças Armadas, o mandatário aproveitou o sábado para passear com o novo chefe da pasta, general Braga Netto. Eles foram a uma entidade beneficente que distribui sopa a pessoas carentes na região administrativa de Itapoã, no Distrito Federal. De lá, o presidente fez uma transmissão ao vivo na qual afirmou que as Forças Armadas “estão à disposição para começar a vacinar”, para colaborar com a vacinação. “Praticamente todos os quartéis do Brasil têm essa condição. Da Marinha, do Exército e da Aeronáutica”, disse.


No Ministério da Defesa já existe uma ampla operação dos militares para logística e apoio na vacinação durante a pandemia. As Forças Armadas auxiliam no transporte de pacientes, medicamentos, insumos, vacinas, segurança da mercadoria e, caso solicitado pelo Ministério da Saúde, ajudam na vacinação. Em geral, essa cooperação ocorre em regiões distantes e de difícil acesso, como aldeias indígenas na Amazônia, e não nas capitais e grandes centros.


Com o agravamento da pandemia, o governo está inclinado a pedir um reforço na ajuda militar. Ontem, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse ter conversado com Braga Netto e Bolsonaro. “Por determinação do nosso presidente, que está pessoalmente empenhado em aumentar a cobertura vacinal do país, nós teremos o apoio das Forças Armadas, seja na logística de distribuição de vacinas, seja por meio do corpo técnico da Saúde, ajudando estados e municípios a vacinarem a população brasileira de uma maneira muito efetiva”, afirmou.


O próprio ministro, entretanto, destacou que o problema no país não é capacidade de vacinação, mas falta de imunizante. “Uma das coisas que o nosso sistema de saúde faz muito bem é vacinar. Nós temos mais de 37 mil salas de vacinação em todo o país e temos uma capacidade de vacinação ainda ociosa por uma série de motivos, mas, sobretudo, por falta de vacina”, explicou.


Queiroga relatou que já existe o apoio dos militares durante a pandemia, com participação nos programas de imunização. “É só ampliar, na parte logística, na parte operacional”, esclareceu, ressaltando a capacidade dos fardados em fazer insumos chegarem às áreas mais remotas do país, característica que ajuda “estados e municípios a vacinarem a população brasileira de maneira muito efetiva”.

Desconforto

Internamente, houve um desconforto com as declarações, pois as Forças Armadas já atuam no combate à pandemia. A resposta do Ministério da Defesa veio em nota, na qual a pasta afirmou que “apoia a vacinação contra a covid-19 desde o primeiro dia da campanha, em 19 de janeiro de 2021”. “Na ocasião, as aeronaves da Força Aérea Brasileira (FAB) transportaram doses da vacina para 11 capitais, além do Distrito Federal. Caso sejam demandadas novamente, as Forças Armadas estão em condições de apoiar a vacinação da população em geral, mediante a coordenação com o Ministério da Saúde e demais órgãos envolvidos”, informou a nota.


A Defesa ressaltou também que as Forças Armadas “sempre estiveram envolvidas na distribuição de vacinas para populações e comunidades indígenas em locais de difícil acesso”. “Até o momento, 194.734 doses de vacina foram aplicadas, em 13 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIS), com o apoio dos Comandos Conjuntos da Operação Covid-19, coordenada pelo ministério”, apontou. A pasta disse, ainda, que militares da Marinha, do Exército e da Aeronáutica também estão prestando apoio logístico aos postos de vacinação das secretarias municipais de saúde de seis capitais. “As Forças Armadas atuam na Operação Covid-19 desde 20 de março de 2020. À época, o Ministério da Defesa ativou dez Comandos Conjuntos e 34 mil militares da Marinha, do Exército e da Aeronáutica assumiram a missão de salvar vidas”, frisou.


Queiroga não especificou de que forma esse apoio interministerial seria fortalecido. “O presidente, eu e o ministro Braga Netto conversamos hoje (ontem). Então, ainda não podemos ter um plano detalhado”, disse. Mas, segundo indicou Bolsonaro, a ideia é ampliar a capacidade de distribuição das vacinas e colocar militares na linha de frente das aplicações, começando dentro dos quartéis.


Na alta cúpula do Planalto, a movimentação foi vista como sinal de que, mesmo com a escolha de um profissional da saúde para substituir o general Eduardo Pazuello na liderança do Ministério da Saúde, a atuação dos militares ainda é ponto forte no governo Bolsonaro. Afinal, mais uma vez, o presidente da República recorre à ala para confiar a missão de fortalecer a estratégia de vacinação. Soma-se a isso a intenção de deixar Braga Netto sob holofotes positivos, em meio à crise criada pelo presidente junto aos militares ao fazer algo inédito no período da República: demitir ministro e comandantes das Forças simultaneamente, decisão que estremeceu a relação entre Bolsonaro e a caserna.

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Mudança gradual no negacionismo

Gradualmente, o governo Bolsonaro procura deixar o negacionismo de lado para se render à dura realidade. Ante a catástrofe de 3 mil mortes diárias e mais de 330 mil vidas perdidas para o novo coronavírus, o presidente da República sinaliza mudanças de rumo. A primeira alteração mais significativa, obviamente, passou pela demissão de Eduardo Pazuello do Ministério da Saúde e a escolha de um médico, Marcelo Queiroga, para comandar a pasta. Além de promover a troca de ministro em uma área chave no combate à covid-19, o Palácio do Planalto aceitou — com um ano de atraso — a criação de um comitê institucional para o enfrentamento da doença, com notória participação da cúpula do Legislativo.


Esses movimentos do Planalto não ocorreram somente em razão do agravamento da pandemia, mas, também, por razões políticas. O recado emitido pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, de que o Congresso Nacional dispõe de remédios amargos para sanar a “espiral de erros” no enfrentamento da pandemia obrigou o Planalto a se aprumar. E isso inclui rever as ações negacionistas do governo — mas não, necessariamente, do presidente Jair Bolsonaro.
Ontem, como de hábito, o chefe do Executivo criticou a política de isolamento social adotada por governadores e prefeitos. A postura do presidente contradiz o apelo do ministro da Saúde, mas, por enquanto, essa contradição não causa um problema político no governo.


Para especialistas em saúde, a pecha de negacionista ainda é evidente no governo. Há muitas reservas em relação à capacidade de Marcelo Queiroga de recomendar medidas sanitárias essenciais — o ministro já se disse contrário a lockdown — para enfrentar o momento crítico da covid-19 no Brasil. Walter Cintra, professor da FGV EAESP e médico sanitarista, está pessimista. “Saiu um general que era controlado pelo presidente e, agora, entra um médico controlado pelo presidente. O que podemos esperar? Nada. Ou melhor, podemos esperar pelo menos a mesma ação desastrosa do ministro Pazuello”, afirma.


Sandra Franco, consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, diz que o trabalho do ministro da Saúde não pode ser desassociado da agenda do presidente da República. Mas acredita que muitas coisas poderiam ter sido feitas de forma diferente. “Nós temos um chefe do Executivo querendo agir como se fosse técnico, mesmo com assessores de alto nível, que ele se recusa a ouvir”, afirma.


A especialista explica que seria possível atribuir ao ministro Pazuello responsabilidade legal pelo ponto em que o país chegou com a falta de recursos para a saúde. Por outro lado, por seguir ordens do presidente, há questões a serem observadas com relação ao general. “O MPF poderia instaurar um procedimento. Eu não chamaria de improbidade administrativa, mas seria para apurar irregularidades na gestão de recursos na Saúde”, esclarece.


Já o epidemiologista Jonas Brant, professor da Faculdade de Ciências da Saúde da UnB, lamenta o fato de o presidente ter utilizado o enfrentamento à pandemia como uma estratégia de fortalecimento político. “Se nós não mudarmos drasticamente o direcionamento da política do governo federal neste momento para usar a ciência como base para enfrentamento da pandemia, vamos continuar vendo um cenário trágico como o que temos agora. Isso deve se agravar nos próximos meses”, alerta.

Discurso calibrado

A calibragem no negacionismo, além de efeitos na ação do Ministério da Saúde, tem implicações políticas. Segundo o cientista político André Rosa, o Palácio do Planalto já percebeu os danos à popularidade do presidente, mas ainda procura manter um posicionamento que agrade a militância bolsonarista. “Ele não poderia fazer uma mudança muito brusca no discurso negacionista. Quem o segue já comprou o discurso da cloroquina, da ivermectina. Se ele fizer isso, pode rachar sua base e deixar seus apoiadores dispersos. E o ambiente político não permite erros, agora, tem Lula no jogo ”, afirma.


Para o especialista, o presidente está em uma espécie de encruzilhada. Se mantiver o discurso negacionista, perde ainda mais popularidade; se mudar, pode confundir apoiadores. “Bolsonaro está entre a cruz e a espada. Não é só mudar o discurso. Se fosse só isso, ele poderia mudar. Mas foram dois anos de governo com essa postura, como ficaria a militância dele com uma mudança tão brusca? Uma mudança significaria que ele ficou com medo da candidatura do Lula e ele não quer aparentar isso”, completa.

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