Apesar da pressão política intensa para a saída do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo — rejeitada, por enquanto, pelo presidente Jair Bolsonaro —, especialistas ressaltam que o chanceler é apenas “espelho” do chefe do Executivo, tanto nas declarações quanto nas ações, e que uma mudança no comando da pasta de nada adiantará se não ocorrer uma guinada na política externa brasileira. Hoje, o Itamaraty é visto como um bunker da extrema direita, que conseguiu se indispor com as duas maiores potências do planeta, os Estados Unidos e a China.
Araújo tem sido criticado, principalmente, no contexto da pandemia. Fez ataques à China, uma das principais fornecedoras de insumos para a produção de vacinas, e foi contrário à quebra de patentes de imunizantes apoiada por outros países emergentes, como a Índia e a África do Sul. Além disso, estremeceu as relações com os Estados Unidos, por ter feito campanha pela reeleição de Donald Trump contra Joe Biden.
Ontem, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), voltou a afirmar que a diplomacia do país “está falha”. Em conversa com Bolsonaro, ele não falou em demissão de Araújo, mas cobrou reação do chefe do Executivo. “A permanência ou a saída do ministro, qualquer que seja ele, é uma decisão que cabe ao presidente da República. O que nos cabe, enquanto Senado, Câmara, enquanto Parlamento, é cobrar e fiscalizar as ações do ministério”, disse, após o encontro.
Segundo Pacheco, “a política externa do Brasil precisa ser corrigida”. “É preciso melhorar a relação com os demais países, incluindo a China, porque é o maior parceiro comercial do país”, afirmou. “O presidente apenas ouviu, e veremos o que pode ser feito. Na verdade, com ministro A ou ministro B, o que importa é um ministério que funcione, é isso que desejamos com o Ministério das Relações Exteriores. Confiamos ao ministério que faça a política de melhora da relação com os demais países.”
As declarações de Pacheco vão ao encontro do que pregam especialistas. Professor titular de relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Eduardo Viola afirmou que a política externa no governo Bolsonaro tem contribuído decisivamente para um status muito negativo do Brasil no planeta. “O ministro tem uma política desastrosa, e há consenso no país sobre o estrago da política externa”, disse. “Mas a questão não é o Ernesto. Ele é o executor. A visão colocada ali é a que Bolsonaro tem do mundo.” Para Viola, ainda que o ministro seja trocado, o próximo terá de ser subordinado às ideias do presidente, ou não ficará no cargo.
Nos corredores do Itamaraty, as informações são de completa insatisfação por parte dos servidores. Até aqueles que, no começo, tentaram dar um tempo para ver as ações de Araújo, já desistiram. O Correio apurou que alguns funcionários, por vezes, adotam a chamada “operação tartaruga” — seguram pedidos do chanceler por discordarem completamente e avaliarem que não são bons para a imagem do país. “Enrolam” o ministro, como resumiu uma fonte. Por ser uma área muito hierarquizada, entretanto, as críticas públicas são evitadas.
O que há no Itamaraty, como apontado por diversos especialistas ao longo da gestão de Araújo, é uma atuação ideológica, com ideias contrárias a um chamado “globalismo” e críticas à China, que prejudicam o Brasil.
Quebra de tradições
Juliano da Silva Cortinhas, professor de Relações Internacionais da UnB, destacou que a atuação de Araújo quebra todas as tradições da política externa brasileira, que era conhecida no mundo todo. Ele frisou que o ministro prejudicou o país num momento em que era necessário uma ação junto a outros país para conseguir vacinas e equipamentos de proteção.
Cortinhas lembrou que o próprio chanceler, em outubro do ano passado, disse preferir ver a política externa do país sendo condenada por outras nações a se aliar ao “cinismo interesseiro dos globalistas, dos corruptos”. Na ocasião, Araújo declarou que “o Brasil fala de liberdade através do mundo; se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”.
“A tradição do Itamaraty sempre foi ter uma linha mais pragmática, pautada nos interesses brasileiros no mundo e no respeito às organizações internacionais, ao direito internacional. Havia diferenças, a depender do governo que assumia, mas nunca havíamos nos descolado tanto dos interesses brasileiros e de defendê-los ao redor do mundo”, enfatizou Cortinhas.
O professor também acredita que, mesmo com a eventual troca de ministro, o Brasil não deve ver alteração na política externa, porque o presidente continuará implementando sua visão de mundo e suas vontades.
Professor de direito internacional da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, Luís Renato Vedovato afirmou que o Brasil perdeu, nos últimos dois anos, a sua posição de referência internacional de diplomacia, quando passou a ter posicionamentos muito fundados na ideologia de extrema direita. Conforme ele, a mudança de ministro, por si só, não vai adiantar. “O que precisa é mudar a posição política do Brasil no exterior”, disse. Segundo Vedovato, será difícil recuperar a diplomacia brasileira nos próximos anos.
Na avaliação de Geraldo Zahran, doutor em relações internacionais e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), a troca, por si só, não trará efeitos positivos para a situação do Brasil aos olhos do mundo. De acordo com ele, o Itamaraty deixou a posição de referência e liderança em muitos debates e grupos de países, como meio ambiente, direitos humanos, mulheres e multilateralismo. (Colaborou Augusto Fernandes)
Cotada para o cargo
Quando se fala em troca no Ministério das Relações Exteriores, um nome que circula é o da embaixadora brasileira na Organização das Nações Unidas (ONU), Maria Nazareth Farani Azevêdo. Foi ela que, segundo reportagem da revista Época, convenceu o ministro Ernesto Araújo a não sair do consórcio Covax Facility, da Organização Mundial da Saúde (OMS), para aquisição de vacina.