A chegada do general Eduardo Pazuello ao Ministério da Saúde em abril de 2020 marcou o início de um processo de substituição de funcionários civis, alguns com carreira na pasta, por quadros da ativa e da reserva das Forças Armadas, muitos sem experiência prévia na área de saúde.
Cerca de 9 meses depois que o então ministro Nelson Teich pediu demissão do cargo, pouco mais de 20 militares passaram a ocupar posições-chave no ministério, com cargos de direção em secretarias, subsecretarias e departamentos.
Em paralelo à militarização, as nomeações de profissionais da saúde civis feitas por Pazuello incluem médicos que defendem o uso de métodos de tratamento contra a covid-19 não recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), como cloroquina e ivermectina. Além de não haver evidências de que esses medicamentos são eficazes contra a doença, seu uso pode causar sérios efeitos colaterais aos pacientes.
Os dados foram compilados a partir de um pedido de Lei de Acesso à Informação e das nomeações registradas no Diário Oficial da União, e cruzados com o decreto n° 9.795, de maio de 2019, que detalha a estrutura organizacional do ministério.
Em resposta ao pedido de lei de acesso, a pasta informou, em 14 de janeiro, que havia 13 militares da ativa cedidos à Saúde, incluindo o general Eduardo Pazuello. Os nomes dos servidores foram identificados pela reportagem em uma portaria do Comando do Exército do dia 6 de janeiro.
Ainda em resposta ao pedido, foi informado que, em setembro de 2018, não constava no sistema de informações sobre servidores, o Siape, nenhum militar vinculado ao órgão.
O ministério afirma não ter registro dos militares da reserva que hoje estão entre seus quadros pois "não há como identificar no sistema (Siape)" quais funcionários pertenceram às Forças Armadas. Por meio de registros na imprensa, de informações do Diário Oficial da União e do painel de servidores do Portal da Transparência, a reportagem identificou 8 oficiais da reserva ligados à pasta, mais um militar da PM e um oficial de inteligência da Abin.
A cientista social Ana Amélia Penido Oliveira, que tem pesquisado sobre as nomeações de militares para cargos civis em outros ministérios, observa que os cargos comissionados nas diferentes pastas costumam refletir a ideologia do governo do momento — ou seja, as nomeações geralmente têm algum componente político.
A diferença, neste caso, é que boa parte das indicações não tem nenhuma experiência na área — o que, para especialistas, tem prejudicado a gestão de um sistema de saúde grande e complexo como o do Brasil e pode ajudar a explicar as falhas que vêm sendo observadas no combate à pandemia de covid-19.
"Antes, o que víamos eram as indicações de 'técnicos políticos' — a nomeação do médico que compartilha da sua visão", exemplifica Oliveira, que faz parte do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional da Unesp.
A pesquisadora pontua que a formação dos militares, por mais que inclua uma visão de logística — apontada como "especialidade" do ministro Pazuello, inclusive — não necessariamente os credencia para gerir uma operação como o sistema de saúde.
"Se existe uma diferença enorme entre administração pública e privada, imagine entre administrar a guerra e a paz. Militar não é formado para negociar, para fazer meio de campo; ele é formado para identificar inimigos, e não para lidar com adversários na política", avalia.
Muitos oficiais, contudo, passam a se considerar bons administradores depois de passarem pelos cursos de gestão frutos de parceria entre as Forças Armadas e instituições privadas, como o MBA Executivo em Política, Estratégia e Alta Administração do Exército, ministrado pela Fundação Getulio Vargas (FGV).
"Existe uma discussão de para quê eles são formados, e as próprias Forças Armadas confundem [esses papéis]. Os militares costumam dizer: 'Eu resolvo do alfinete ao foguete' — quando a gente vive cada vez mais em uma sociedade de especialização do trabalho", destaca.
"Eles deveriam estar concentrados em serem bons militares", opina.
Secretaria-executiva verde oliva
Os militares ocupam cargos de direção ou coordenação em pelo menos 6 subsecretarias e departamentos ligados à secretaria-executiva, que têm como missão desde a compra de insumos estratégicos à saúde aos repasses do SUS a Estados e municípios.
Parte das atribuições pode ser conferida na portaria nº 2.646, que traz a relação dos titulares de cargos comissionados na pasta.
O Departamento de Logística em Saúde é o que tem o maior número de oficiais. São pelo menos quatro: o tenente-coronel Alex Lial Marinho, coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos para Saúde; o tenente-coronel Marcelo Batista Costa, substituto na coordenação-geral de Aquisições de Insumos Estratégicos para Saúde; o coronel da reserva Marcelo Blanco da Costa, assessor especial, e o general da reserva Ridauto Lúcio Fernandes, recém-nomeado assessor.
Na subsecretaria de Planejamento e Orçamento, por sua vez, estão lotados o coronel da reserva Paulo Guilherme Ribeiro Fernandes (coordenador-geral de planejamento) e o capitão Mario Luiz Ricette Costa (assessor técnico).
O Departamento de Gestão Interfederativa e Participativa, responsável por articular a gestão de saúde com Estados e municípios e também ligado à secretaria-executiva, é dirigido pelo tenente-coronel Reginaldo Ramos Machado, enquanto a diretoria-executiva do Fundo Nacional de Saúde (FNS) tem o subtenente Giovani Cruz Camarão como coordenador de finanças e o primeiro-tenente Vagner Luiz da Silva Rangel como coordenador-geral de execução orçamentária.
O Departamento de Monitoramento e Avaliação do SUS, por sua vez, é dirigido pelo major da reserva Angelo Martins Denicoli, e o Departamento de Assuntos Administrativos era chefiado até recentemente pelo coronel Alexandre Martinelli Cerqueira.
Ele foi exonerado no dia 19 de janeiro, no mesmo dia da nomeação de Marcos Eraldo Arnaud Marques, marqueteiro conhecido como "Marquinhos Show", como assessor especial do ministro da Saúde. O DOU de 21 de janeiro registra que o militar foi transferido para a reserva.
Com suas subsecretarias e departamentos, a secretaria-executiva tem a função de supervisionar e coordenar as atividades das demais secretarias do Ministério da Saúde, além das autarquias, fundações e empresas públicas.
Era chefiada na gestão do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta por João Gabbardo dos Reis, que foi substituído por Pazuello na gestão Teich.
Hoje é capitaneada pelo general da reserva Antônio Élcio Franco Filho. Seu número 2, o secretário-adjunto, é o tenente-coronel da reserva Jorge Luiz Kormann — que chegou a ser indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para a diretoria da Anvisa, mas foi internado em janeiro com covid-19.
Pulverização entre os diferentes departamentos
Além da secretaria-executiva, os militares também estão à frente da Secretaria de Atenção Especializada à Saúde, que tem o coronel Luiz Otavio Franco Duarte como secretário, e da Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena, comandada pelo coronel da reserva Robson Santos da Silva, indicado ainda por Mandetta. Esta última também conta com o segundo-tenente Vilson Roberto Ortiz Grzechoczinski, nomeado em maio de 2020 como Coordenador Distrital de Saúde Indígena.
No mesmo período, o coronel da Polícia Militar Giovanne Silva Aguiar foi indicado como presidente da Funasa, fundação que promove ações de saneamento para prevenção e controle de doenças.
Oficiais ocupam ainda posições importantes na Secretaria de Atenção Primária à Saúde — a tenente-coronel Laura Tiriba Appi, médica, é diretora de programa na área — e na Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, onde o oficial de inteligência da Abin Myron Moraes Pires é coordenador-geral do Complexo Industrial da Saúde.
Um ex-funcionário da pasta que falou sob a condição de anonimato diz que a gestão desta última área é um exemplo prático do impacto negativo da administração feita por profissionais que não têm experiência na saúde.
O Complexo Industrial da Saúde, exemplifica, era o setor que poderia ter negociado com a Oxford/AstraZeneca que a compra das vacinas contra covid-19 incluísse desde o início a transferência de tecnologia para a fabricação de IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo) no Brasil.
Com a produção concentrada na China e na Índia, a entrega do insumo prevista para este mês de janeiro sofreu um atraso e impediu que a Fiocruz iniciasse a produção do imunizante, atrasando o cronograma de vacinação. Ainda não há uma data confirmada para a entrega da remessa.
A BBC News Brasil conversou ao todo com quatro ex-funcionários do ministério, que pediram para não serem identificados. Mesmo não estando mais na pasta, eles temem represálias — como corte de financiamento de projetos ou atraso em pagamentos, já que a União é responsável por diversos repasses para Estados e municípios.
Um deles ressaltou que a falta de gestores especializados prejudicou, por exemplo, a centralização de compras governamentais de itens fundamentais para o combate à pandemia, como respiradores, testes diagnósticos e equipamentos de proteção individual. Sem uma organização da demanda por parte do governo federal, além de pagar mais caro, Estados e municípios chegaram a disputar entre si o acesso a esses recursos.
As falhas logísticas, na opinião desses ex-funcionários, se expressam também em episódios como o dos testes para diagnóstico de covid-19 que não haviam sido distribuídos e estavam prestes a vencer em dezembro — quando faltavam kits em todo o país.
Ou no episódio da suspensão de exames de HIV e hepatite no SUS, também em dezembro, por falta de testes de genotipagem — porque o contrato com a empresa que fornecia os insumos venceu sem que uma nova licitação tivesse sido feita.
"Transformaram o Ministério da Saúde numa caserna. De DAS-4 pra cima [referência a cargos comissionados de Direção e Assessoramento Superiores] é basicamente militar — e quem não sabe fazer não sabe mandar", diz um gestor que passou mais de uma década na pasta.
"Eles não entendem de sistema de saúde", afirma outro gestor experiente, emendando que mesmo secretarias chefiadas por profissionais de saúde hoje estão muitas vezes sendo geridas por quadros despreparados.
É o caso, ele diz, da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde.
A secretária Mayra Pinheiro, pediatra, foi apelidada na pasta de "capitã cloroquina", segundo reportagem da revista Época, por pressionar secretarias de saúde a distribuir o medicamento usado originalmente contra malária a pacientes com covid-19.
Não há qualquer evidência de que a cloroquina e a hidroxicloroquina funcionem contra o novo coronavírus — e os fármacos podem ainda trazer sérios efeitos colaterais, como arritmia cardíaca.
Sua foto de perfil no Facebook traz os dizeres "eu sou médico e apoio o atendimento precoce". Já defendido pelo presidente e pelo ministro da Saúde, o atendimento precoce consiste na administração de medicamentos como os antimaláricos e o antiparasitário ivermectina, também sem efetividade comprovada contra a covid-19.
Algumas semanas atrás, Pazuello chegou a dizer em uma coletiva de imprensa que o atendimento precoce consistia apenas na recomendação para que as pessoas procurassem o mais rápido possível uma unidade de saúde caso apresentassem sintomas, já que não há tratamento comprovado contra a doença.
O ministério chegou, entretanto, a publicar nota técnica em que recomendava aos médicos que receitassem cloroquina aos pacientes — o documento foi depois modificado. O presidente, por sua vez, já foi fotografado e filmado com caixas de cloroquina e já defendeu o uso do medicamento em suas redes sociais.
Entre os quadros formados por profissionais de saúde, há ainda o secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, o médico Hélio Angotti Netto, admirador do escritor Olavo de Carvalho.
Em um post de 2015 em seu blog, ele dizia que estudava a obra de Olavo fazia 12 anos e que fizera seu curso online "desde o início".
Vigilância e 'lei da mordaça'
Um ex-funcionário da equipe de Mandetta que acompanhou de perto a crise entre o então ministro e o presidente e o início da militarização do Ministério da Saúde diz que, além de não terem capacidade técnica para assumir a direção da pasta, os oficiais instauraram uma espécie de cultura de vigilância que também tem impacto sobre o desempenho da gestão.
"Técnicos que poderiam trabalhar no planejamento (contra a pandemia) foram colocados em suspeição", ele diz.
Assim, projetos foram paralisados e alguns processos passaram a tramitar de forma mais lenta. Em paralelo, servidores passaram a temer que tivessem e-mails e outras comunicações monitoradas.
A cientista social Ana Amélia Penido Oliveira pontua que a sensação de vigilância é um dos efeitos da ramificação dos militares nas diferentes instâncias do governo e tem sido observada em diferentes ministérios.
"Ela inibe os técnicos de falarem", diz ela.
Na Saúde, a chamada "lei da mordaça" fez com que servidores de carreira se retraíssem, diz uma fonte, e os militares tomassem a frente em diversas áreas para as quais não tinham competência técnica.
Em alguns casos, afirma esse mesmo gestor, diante da dificuldade de tocar o cotidiano em algumas áreas, nomeações chegaram a ser revogadas e técnicos foram reconduzidos às posições — ainda que os militares seguissem acompanhando o trabalho como uma espécie de eminência parda.
Durante a análise das informações, a reportagem se deparou com um caso em que a servidora Alexandra das Neves Agapito de Araújo foi exonerada do cargo de coordenadora de contabilidade do FNS em 19 de maio de 2020 e reconduzida à posição menos de um mês depois, em 10 de junho, de acordo com os registros do Diário Oficial.
Nesse período, o cargo foi ocupado pelo subtenente André Cabral Botelho — com uma remuneração equivalente a quase o dobro da antecessora, de R$ 14,3 mil, conforme o registro do mês de junho no Portal da Transparência.
Apesar da renomeação da antiga coordenadora de contabilidade, a exoneração do oficial do cargo não consta no Diário Oficial. Na menção mais recente no DOU, ele aparece como assessor técnico, subordinado diretamente ao ministro.
A pasta foi questionada sobre o caso e, logo que envie seu posicionamento, ele será acrescentado a este texto.
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