O início de 2021 mostrou ao governo federal que a política externa precisa de mudanças pontuais para evitar a retaliação de outras nações e o isolamento do Brasil diante da comunidade internacional. A demora do país em concluir a importação de doses das vacinas contra a covid-19 e de insumos para a produção dos imunizantes em solo nacional, além da saída de Donald Trump da Presidência dos Estados Unidos, forçou o Palácio do Planalto a rever posturas, na tentativa de poupar o Brasil de mais represálias.
O alinhamento ideológico a Trump é visto como o principal obstáculo a ser superado. Mesmo com o republicano fora da Casa Branca, o Itamaraty ainda cultua o nome do agora ex-presidente. Bolsonaro torceu pela reeleição do norte-americano e, depois de as urnas terem indicado a vitória de Joe Biden na corrida presidencial, o mandatário brasileiro levantou dúvidas sobre a lisura do pleito e resistiu em reconhecer o resultado — só foi cumprimentá-lo mais de um mês depois. Antes disso, os dois trocaram farpas, em especial pelo desmatamento da Amazônia. Biden chegou a cogitar uma ajuda bilionária ao Brasil e impor barreiras comerciais ao país se fosse eleito, e Bolsonaro reagiu ameaçando começar uma guerra com os EUA, caso a diplomacia não fosse suficiente para os dois países entrarem em acordo.
Mas, nesta semana, Bolsonaro deu indícios de que deve alterar a conduta em relação a Biden. Na última quarta-feira, ele enviou uma carta ao norte-americano poucas horas após a posse e disse acreditar em um “excelente futuro para a parceria Brasil-EUA”. Entre as promessas feitas ao democrata, o chefe do Planalto afirmou que “estamos prontos a continuar nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio ambiente, em especial a Amazônia”.
Num momento em que voltou a ser bastante criticado pelo comportamento diante da pandemia, Bolsonaro entendeu, também, que é preciso adaptar o discurso e baixar as armas, seja para preservar a própria imagem, seja para não penalizar o país. A prova disso é de que ele está disposto a conversar com o presidente da China, Xi Jinping, de olho na importação da matéria-prima necessária para a produção, em solo nacional, da vacina da Oxford, a Covishield; e a da farmacêutica chinesa Sinovac, a CoronaVac.
Bolsonaro solicitou a audiência, na quarta-feira, mas o encontro entre os dois mandatários ainda não aconteceu. A mudança na atitude do chefe do Executivo brasileiro acontece depois de ele ter passado quase o ano de 2020 inteiro criticando a China, sugerindo que o novo coronavírus foi criado nos laboratórios do país e questionando a eficácia da CoronaVac. O mandatário chegou a negar que compraria as doses do imunizante, mas, agora, diz que a vacina é do Brasil.
Nos últimos dias, inclusive, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, assumiu as negociações com a Índia para garantir a importação de 2 milhões de doses da Covishield. O trabalho surtiu efeito, e a Índia anunciou, ontem, a liberação do envio das doses do imunizante ao Brasil.
Em live ontem à noite, Bolsonaro e o ministro disseram que a política externa do país está “excepcional”. Sobre a relação com os Estados Unidos de Biden, Araújo comentou que “tem tudo para ser boa, se conseguirmos construir relações a partir da realidade, a partir do nosso interesse”. Na sequência, contudo, Bolsonaro pediu para o ministro não tocar mais no assunto. O presidente tentou falar baixo, mas os microfones captaram a mensagem dele. “Não é caso de entrar em política externa de outros países, né? Fala alguma coisa sem interferir.”
Riscos
Professor de direito internacional da Unicamp e da PUC de Campinas, Luís Renato Vedovato apontou um cenário de isolamento para o país, caso Bolsonaro insista com a política ambiental ideológica e negacionista. “Se o presidente entender que o interesse é da nação, a adequação às regras internacionais é uma demanda necessária. Mas, se tiver como interesse suas questões particulares, aí podemos ver o isolamento do Brasil às custas de um grande prejuízo. Bolsonaro precisa buscar os interesses da nação e perceber que avanços internacionais são mais importantes do que a ideologia interna.”
Para Lucas Fernandes, analista político internacional da BMJ Consultores Associados, não é fácil prever até que ponto o chefe do Planalto está disposto a ceder com as demais lideranças internacionais. “O real impacto, vamos descobrir nesta nova fase. Boa parte das declarações de Bolsonaro teve impacto mitigado porque ele tinha como trunfo um líder mundial compactuando com um discurso semelhante. Com a saída do maior expoente negacionista, o custo do Brasil será maior e ficará mais em evidência”, ressaltou. “O presidente está em risco de perder popularidade, e a tendência é de que reposicione a estratégia de política internacional.”
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