Idealismo e vacina
Em mais um capítulo da extenuante saga da covid-19, o mundo entrou em compasso de espera pelo anúncio da cura — ou, ao menos, do medicamento mais eficaz produzido pela ciência para combater o novo coronavírus. Em uma perspectiva idealista, pode-se entender que a humanidade vislumbra a vacina como uma espécie de passaporte para o futuro, vitória da vida sobre a morte, triunfo da ciência, celebração da nossa ilusória e efêmera eternidade. Ainda nessa perspectiva idealista, a esperança pela vacina tornou-se um sentimento comum em escala global, o elo que derruba fronteiras e se sobrepõe a diferenças culturais, linguísticas, econômicas, políticas. Afinal, a humanidade é uma só.
Antes fosse assim. A realidade nos obriga a corrigir essa percepção. As vacinas que estão por vir resultam de um investimento comparável ao que se viu durante as duas grandes guerras do século XX, quando nações direcionaram todos os seus recursos — políticos, financeiros, naturais e humanos — para impor uma nova ordem mundial. O mesmo esforço monumental continuou na Guerra Fria, na qual duas superpotências exerciam o poder militar, econômico e até cultural para incutir — ou impor — valores estabelecidos por regimes opostos. Diferentemente da polarização da segunda metade do século XX, as nações convergem, neste momento, em torno de um único objetivo: produzir um imunizante capaz de proteger o mundo de um inimigo mortal e evitar um impacto maior — que já adquiriu proporções históricas — na saúde pública, na política, na economia, nas relações sociais, na alma do mundo.
Esses dilemas podem ser resumidos por perguntas simples, que demandam respostas complexas. Quando os brasileiros terão a vacina disponível? Após a imunização dos profissionais de saúde e dos grupos de risco, quais serão os critérios para a vacinação? Haverá prioridade para os estados mais atingidos? Quanto custará a vacina? Quem financiará? O direito à vacina será garantido por quem? Trata-se de problemas de ordem política e econômica, que dependem das condições estabelecidas pela indústria farmacêutica e da capacidade de organização do poder público. Cite-se, como exemplo, a vacina produzida pela Pfizer, anunciada esta semana, com taxa de eficácia de 95%. O imunizante obteve resultados extraordinários, mas só pode ser manejado em condições muito especiais, como uma refrigeração abaixo de 70°C. Para um país como o Brasil, oferecer uma infraestrutura desse porte constitui desafio acima da nossa capacidade. Existe, ainda, uma discussão importante sobre patentes. O impasse, pois, está colocado.
Debater, de maneira responsável, como será a distribuição de uma futura vacina constitui genuína discussão política em torno da covid-19. Não me refiro às bravatas que ouvimos, dia sim, dia também, do Planalto ou da Anvisa, nem de um Ministério da Saúde cuja credibilidade é incapaz de sustentar um tuíte. Refiro-me à missão dos Poderes públicos, em conjunto com as entidades médicas e sanitárias, de definir a estratégia de imunização da população, com espírito público e sem mesquinharias. Não se trata de tarefa fácil, pois até ações consagradas, como a vacinação contra a poliomielite ou contra o sarampo, enfrentam dificuldades. Se o Brasil cumpre apenas um papel coadjuvante na produção de vacinas — em que pesem o esforço de instituições sérias, como o Butantan, e a iniciativa de milhares de voluntários —, chegou o momento de se preparar para a chegada da boa-nova. E, assim, assegurar a imunização contra o novo coronavírus — ainda que tenha gente que considere uma afronta um cidadão ser compelido a se vacinar, a fim de preservar a própria vida e proteger a sociedade da disseminação de um mal descontrolado.