Escrevendo ainda na noite de sexta-feira, 6 de novembro, quando as apurações americanas encaminham-se lentamente para um desfecho, vários sentimentos diferentes tomam conta do meu espírito. O primeiro deles é de alívio pela agora muito provável derrota de Donald Trump, exemplo perfeito de um homem sem qualidades cívicas e que durante todo o seu mandato feriu as normas e as instituições democráticas do seu país de um modo tão profundo que talvez não possam mais ser completamente reconstituidas. Sua passagem pelo poder deixará marcas indeléveis, confirmando o que predisse o poeta : o mal que os homens fazem vive depois deles.
No entanto, há derrotas que são inconclusivas e deixam aberto o caminho para novos conflitos. As eleições revelaram um retrato sombrio de grande parte da sociedade americana. É voz corrente na tradição política que os candidatos quando disputam o voto disfarçam sua verdadeira personalidade e omitem suas opiniões mais polêmicas, para atrair o maior número de eleitores. Algumas vezes isto é verdade. Mas, com Donald Trump em 2020, não foi isso que ocorreu.
Trump obteve 70 milhões de votos, uma das três maiores votações na história americana, exatamente por ser Trump. Nestas eleições, ele não ofereceu uma visão imaginária de um homem desconhecido, mas o retrato verdadeiro de um homem plenamente conhecido e admirado por milhões de pessoas que compartilham sua visão do mundo. Seu desprezo temerário pela ciência, sua aversão à cultura, seu elogio da violência, do ódio, da intolerância e sua capacidade de mentir sobre as coisas mais sérias, encontraram o apoio e o aplauso de uma população maior do que a maioria dos países do mundo.
Apesar da sua palavra de ordem, nunca a América foi tão pequena perante o mundo. Ele desconstruiu todas as instituições internacionais criadas pela liderança dos Estados Unidos após a guerra, deixando o mundo à mercê de um vale tudo internacional, onde pontificam governantes autoritários e regimes despóticos. Trump deixou sozinhos todos os que sonharam com uma comunidade internacional de democracias esclarecidas, capaz de dialogar em posição de força com a potência chinesa e a Rússia ressurgente, encerrando um século de cooperação que produziu o que de melhor o mundo tem hoje.
Um governo Biden, sem maioria no Senado e fragilizado por uma Suprema Corte abertamente invasiva e partidarizada, terá de enfrentar os estragos da pandemia que feriu os Estados Unidos mais fortemente do que qualquer outro país do mundo, com mais de 100 mil novos casos por dia e uma economia com recessão severa e elevado desemprego. Para isto terá de superar a oposição raivosa de 70 milhões de cidadãos que compartilham a visão trumpiana do mundo e da vida e de um Senado que pode obstruir toda sua agenda de governo. Se este quadro realmente se confirmar a América estará dando um passo definitivo rumo ao seu crepúsculo.
O que parece claro de tudo isto é que apenas a vitória de Biden não será suficiente para curar as feridas da América. O que levou o país mais rico e poderoso do mundo, o que abriga a maioria das grandes universidades e centros de pesquisa científica, o que lidera a produção da cultura que é consumida em toda a parte, a uma regressão civilizacional desta ordem, certamente tem raízes muito profundas. A globalização e as novas tecnologias marginalizaram imensas populações que viviam em torno da dominação industrial do país. A indústria americana perdeu competitividade no mundo e a nova economia digital requer competências estranhas ao velho operário industrial. Assim, o dinheiro e a renda mudaram de mãos, deixando para trás a antiga e gloriosa classe média.
Esses novos deserdados, mais o recrudescimento das identidades religiosas e o medo das mudanças nos costumes e na cultura, alimentam a formação de uma resistência reacionária que sonha em parar o relógio do mundo. Podem, no máximo, paralisar o seu país. Espero que, no Brasil, sejamos capazes de seguir a lição, pois a grande sabedoria é aprender com o erro dos outros.