Sociedade

Ainda sem força para mudar a lei, governo reforça agenda antiaborto

Sem condições de avançar no Congresso com uma proposta conservadora sobre a interrupção da gravidez, Planalto aciona ministros em iniciativas paralelas, sem força de lei

Em ações cirúrgicas e paralelas à atual legislação brasileira, o governo avança com a agenda antiaborto, uma das principais bandeiras do bolsonarismo. O movimento ganha força em meio ao imbróglio da discussão no Congresso, já que, desde a década de 1940, o país não consegue avançar na promoção de uma reforma legislativa sobre o tema. No último dia 27 de outubro, o presidente Jair Bolsonaro decretou um plano de desenvolvimento de estratégias até 2031, que inclui a promoção do “direito à vida, desde a concepção até a morte natural”. Dias antes, o Brasil passou a fazer parte do chamado Consenso de Genebra, iniciativa que reforça a postura antiaborto, sob o argumento de ênfase na saúde da mulher e no papel da família como unidade fundamental da sociedade.

Sem força de tratado, o acordo internacional serve como uma resposta ofensiva para o combate do aborto, deixando a mensagem para organizações internacionais de que o atual governo não pretende entrar na pauta de legalização da medida. O consenso é uma proposta do governo dos Estados Unidos em parceria com Brasil, Egito, Hungria, Indonésia e Uganda, e foi assinado por 31 países, permanecendo aberto para novos integrantes.

Participaram da reunião de assinatura os ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. “Nos reunimos aqui em defesa da saúde da mulher, do fortalecimento da família e da proteção da vida”, discursou Araújo, frisando, ainda, a agenda antiaborto. “Nós reafirmamos também o nosso dever de proteger a vida humana desde a sua concepção. Rejeitamos categoricamente o aborto como método do planejamento familiar, assim como toda e qualquer iniciativa em favor de um direito internacional ao aborto ou que insinue esse direito ainda que veladamente”, acrescentou.

“O acordo propõe uma suposta defesa da família, mas considera apenas o modelo heteronormativo, de união entre homens e mulheres. O documento também destaca a proteção da vida desde a concepção e o direito à saúde das mulheres, mas descarta o acesso ao aborto legal e seguro. Os países pretendem garantir a soberania nacional e a compartilhar o compromisso dentro do sistema das Nações Unidas”, critica texto da ONG Conectas sobre o acordo. Para a diretora de programas da instituição, Camila Asano, a medida vai de encontro à própria legislação, “que prevê o direito ao serviço de saúde para interrupção de gravidez decorrente de estupro”.

Por outro lado, o Movimento Brasil Sem Aborto endossou a postura do governo brasileiro “contra a interrupção da gravidez e em defesa da família tradicional”. O documento determina, ainda, que “quaisquer medidas ou mudanças relacionadas ao aborto dentro do sistema de saúde só podem ser determinadas em nível nacional ou local de acordo com o processo legislativo nacional”.

Polarização


Enquanto no Executivo o movimento antiaborto fica notório, no Legislativo, a polarização do assunto tem travado a pauta. Somente neste ano, mais 24 projetos de lei sobre o tema foram apresentados na Câmara. O atual posicionamento do governo dá destaque a deputados e senadores pró-aborto, fazendo as pautas ganharem espaço. Além da Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto e em Defesa da Vida, há a chamada de PEC da Vida. A proposta defende o “direito à vida desde a concepção”, chegou a ser desarquivada em 2019, mas passa por “ajuste” pelas mãos do senador Eduardo Girão (Podemos-CE), um dos defensores da PEC. O movimento não tem força suficiente para aprovar propostas que vão de encontro às situações de aborto autorizadas no Brasil, mas empaca qualquer discussão de um procedimento legal e seguro como política pública em saúde da mulher.

Diante do impasse, o governo federal aproveita para fortalecer a pauta por meio de decreto, com ênfase na defesa à vida antes do nascimento. É maneira de provocar ruídos jurídicos ao que atualmente é permitido pela lei. O decreto, chamado de Estratégia Federal de Desenvolvimento, orienta a promoção “do direito à vida, desde a concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro, por meio de políticas de paternidade responsável, planejamento familiar e atenção às gestantes”.

“Bolsonaro quer mudar a Constituição Federal impondo uma concepção religiosa de mistério da vida”, criticou a antropóloga e pesquisadora da Universidade de Brasília Debora Diniz, referência na discussão sobre igualdade de gênero e saúde pública da mulher. “Direitos humanos para Bolsonaro é criminalizar o aborto. Inclusive em casos de risco de vida para mulheres e meninas, ou estupro”, completou ao comentar sobre o decreto pelas redes sociais.

Aborto legal


O último avanço na pauta pró-aborto teve interferência do Poder Judiciário. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) legalizou o direito a interromper a gestação no caso de gravidez de anencéfalo. O procedimento também é autorizado em caso de estupro e risco de morte para a mulher. O então decano Celso de Mello foi um dos ministros que acompanhou o relator Marco Aurélio Mello. Em seu voto, disse: “Nesta República laica, o Direito não se submete à religião, embora a respeite”. E continuou: “O único critério a ser utilizado na solução da controvérsia agora em questão é o que se fundamenta no texto da Constituição, nos tratados internacionais e nas leis da República”.


Oposição à "ideologia de gênero"

As diretrizes se apresentam como uma alternativa para a Agenda 2030 defendida pela Organização das Nações Unidas (ONU), que traz um objetivo de desenvolvimento sustentável (ODS): a questão de equidade de gênero como o compromisso de “assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos, como acordado em conformidade com o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de Pequim”. Nos documentos, há a previsão de se rever leis que preveem medidas punitivas contra as mulheres que praticaram abortos ilegais.

Na visão do presidente Jair Bolsonaro, a agenda traz “nefasta ideologia de gênero e o aborto”, como definiu ele em uma postagem nas redes sociais. Não é a primeira vez, nos últimos meses, em que ressoa a divergência de posicionamento entre o governo brasileiro e a Organização das Nações Unidas (ONU)( sobre o aborto.

Em agosto, uma semana após o caso da menina de 10 anos estuprada pelo tio e submetida a um aborto legal ser alvo de discussões, foi publicada uma portaria pelo Ministério da Saúde obrigando os profissionais de saúde a relatarem à polícia quando uma vítima de estupro desejar realizar um aborto legal. Além disso, o texto determina que os profissionais devem “informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje, e essa deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada”. A nova regra foi alvo de críticas por mecanismos da ONU, que sustentaram violação dos padrões internacionais.

A carta, assinada pelo Grupo de Trabalho da ONU sobre Discriminação contra Mulheres e Meninas, aponta para a possibilidade de aumento de abortos inseguros. “Desejamos expressar nossas sérias preocupações sobre a não conformidade desta portaria com os padrões internacionalmente acordados relativos aos direitos das mulheres e meninas à igualdade, dignidade, autonomia, informação e integridade física e respeito por sua vida privada e pelo mais alto padrão de saúde atingível, incluindo a saúde sexual e reprodutiva, sem discriminação; bem como o direito à liberdade da tortura e tratamento cruel, desumano e degradante”, alertava o documento. Em resposta, o Ministério das Relações Exteriores insistiu que a portaria “não afeta o acesso aos serviços de saúde para as vítimas da violência sexual”.

“Somos contra”
Se, por um lado, o Executivo se afasta dos padrões defendidos pela ONU, por outro, se aproxima das contribuições internacionais relativas às entidades cristãs americanas ligadas ao movimento antiaborto. Segundo levantamentos da entidade OpenDemocracy, essas ONGs já destinaram mais de R$ 1,6 bilhão para fomentar a agenda. Tanto representantes da Secretaria Nacional da Família quanto a própria ministra da Mulher, Damares Alves, já se reuniram com organizações do tipo para discutir “questões relacionadas à promoção e à defesa da liberdade de religião ou crença”, como indicou a pasta.

A agenda governamental antiaborto é tão evidente quanto declarada. Após o programa Pátria Voluntária, comandado pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro, repassar R$ 14,7 mil para a Associação Virgem de Guadalupe, ONG que luta contra o aborto, Damares criticou a divulgação pela mídia. “Imprensa quando governo de esquerda financia ONGs para promoverem aborto como forma de controle familiar”, escreveu Damares, acrescentando um “emoji” de um macaco com as mãos nos olhos. “Não há no direito internacional qualquer regra que obrigue países a legalizarem o aborto. E somos contra. O eleitor brasileiro votou no projeto conservador da vida e antiaborto. Nosso país é soberano”, escreveu a ministra, em outra postagem sobre o tema.