Congresso

Deputados e juristas negros debatem ações de enfrentamento ao racismo

Debate aconteceu no âmbito da comissão externa que acompanha a investigação da morte de João Alberto Freitas, 40 anos, espancado até a morte por seguranças do Carrefour em Porto Alegre, em 19 de novembro último

Luiz Calcagno
postado em 27/11/2020 21:50 / atualizado em 30/11/2020 10:45
Protesto contra o Carrefour na Asa Sul: luta contra o racismo estrutural -  (crédito: Bárbara Fragoso/CB/D.A Press)
Protesto contra o Carrefour na Asa Sul: luta contra o racismo estrutural - (crédito: Bárbara Fragoso/CB/D.A Press)

Deputados da comissão externa que acompanha a investigação da morte de João Alberto Freitas, 40 anos, espancado até a morte por seguranças do Carrefour em Porto Alegre, em 19 de novembro último, se reuniram com juristas negros para debater ações de cobate ao racismo.

A reunião terminou com uma série de resoluções. Dentre elas, levar para o plenário o Projeto de Decreto Legislativo da Câmara (PDC) número 861/2017, que aprova, segundo a ementa, “o texto da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, adotada na Guatemala, por ocasião da 43ª Sessão Ordinária da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, em 05 de junho de 2013”. Diversos especialistas destacaram que o projeto reforçará leis já existentes de combate à discriminação por raça.

Além disso, o deputado Orlando Silva (PCdoB), que presidiu o encontro, listou um mapeamento de projetos de lei de combate ao racismo já existentes para serem debatidos; a necessidade de um debate mais aprofundado sobre o estatuto da promoção da igualdade racial; a garantia de que os compromissos firmados pelo Carrefour tenham peso de termo de Ajuste de Conduta (TAC).

Operadores do direito também ressaltaram a necessidade de ações preventivas, de combate à informalidade no trabalho e do endurecimento da legislação que regulamenta a segurança privada. A ideia é incluir no texto exigências de ações de combate ao racismo e punições financeiras a empresas acusadas de praticar discriminação racial. O dinheiro arrecadado seria revertido a políticas públicas de promoção da igualdade racial.

Racismo institucional

Outro tópico destacado foi a necessidade de enfrentamento do racismo institucional, inclusive no sistema de Justiça. Orlando Silva sugeriu, ainda, constituir um “grupo de operadores do direito negros que possam fazer uma revisão da legislação brasileira e apresentar um conjunto de propostas legislativas para trazer mudanças a médio e longo prazo”.

Advogada de movimentos negros, Sheila de Carvalho destacou a importância de o parlamento ouvir essas organizações para nortear a criação de leis de combate à discriminação. Ela destacou a importância de responsabilizar empresas que violam direitos humanos, “em especial, os direitos humanos de pessoas negras”, com medidas de reparação.

“Violência sociais sistêmicas que têm acontecido, em alguns casos, ganham a mídia, mas são incapazes de ocupar os espaços de legislação e formulação de políticas públicas. Na Câmara, tem o PLS 135/2010, que procura estabelecer o estatuto da segurança privada e instituições financeiras, e é incapaz de discutir questões importantes como o racismo estrutural", criticou a especialista.

Carvalho comentou também as falhas no setor de segurança. "Sabemos a dimensão da segurança privada no país e como isso está vinculado a violência que vivemos em todas as forças públicas de segurança. É importante discutir o embrionamento entre os que exercem a segurança privada, muitos expulsos da segurança pública, que voltam às ruas com o papel de seguridade, e que vão praticar os mesmo atos ilícitos que praticaram nas forças públicas”, alertou.

A jurista destacou que a empresa Vector, que fazia a segurança terceirizada do Carrefour, trabalha para outras marcas de renome nacional. “O Carrefour não é o único. Temos Extra, Habib's, Lojas Americanas, com a mesma empresa do Carrefour. E não vemos mobilização para pedir desligamento de contrato. É uma situação sistêmica de todo um setor empresarial no Brasil”, afirmou.

Por meio de nota, a assessoria das Lojas Americanas respondeu: “Americanas informa que não trabalha com o Grupo Vector desde 2019”.

Mais rigor

A deputada Benedita da Silva (PT-RJ) lembrou que a Câmara tem muitos projetos de combate ao racismo parados e pediu mais rigor na responsabilização às empresas. “O Carrefour, agora, cuida da família, chama os seus funcionários, vai ter aula de direitos humanos, mas tem que ter, nos contratos, ação mais contundente”, afirmou.

Juiz de direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, André Luiz Nicolitt destacou a importância de, a partir da comoção causada pela morte de João Alberto, aprofundar o debate e medidas de combate ao racismo. Para Nicolitt, uma das estratégias deve ser reforçar o estatuto da promoção da igualdade racial.

O deputado Bira do Pindaré (PSB-MA), presidente da Frente Parlamentar Quilombola, apontou que o parlamento também precisa ficar atento às próprias ações. “No caso da (base militar de) Alcântara, a Casa ignorou a convenção 169. Isso é uma prática racista. Havia a necessidade de consulta às comunidades quilombolas, uma exigência legal que não foi respeitada no caso de Alcântara. A Câmara aprovou o acordo com os Estados Unidos para explorar a base de Alcântara sem consultar as comunidades quilombolas locais!, lembrou.

As empresas de segurança contam com muita informalidade entre seus funcionários, destacou o professor de Direito e Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas Thiago de Souza Amparo. “Segundo o Anuário de Segurança Pública de 2020, 51% dos vigilantes privados estão inativos, mas muitos trabalham de forma informal", contou o especialista.

Souza Amparo também falou dos procedimentos em caso de episódios violentos, como o de Porto Alegre. "Precisamos verificar, também, entraves jurídicos com relação à indenização por violência letal. Uma pesquisa na FGV mostra que é difícil para familiares de vítimas de violência letal em caso de segurança privada privada, conseguir uma indenização. O parlamento também precisa pressionar com legislações para produção de dados. O Ministério da Justiça tem que ter as dimensões do racismo estrutural”, apontou.

Pesquisa

Também participou do debate o doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Adilson Moreira, que concluiu um tratado de direito antidiscriminatório, a primeira obra no Brasil que estabelece relação entre governança corporativa, compliance e direito discriminatório. Moreira destacou a necessidade de empresas terem em seu corpo de funcionários, inclusive em cargos de chefia, negros, mulheres e homossexuais. “Atos como o assassinato no Carrefour decorrem da cultura institucional, baseada não apenas no tipo de funcionário mais adequado, mas também no tipo de ser humano visto como ideal, que é homem branco, hétero, de classe média alta”, afirmou.

Para o estudioso, é preciso mudar a cultura corporativa no Brasil, para que se passe a entender as empresas não apenas como sistemas de geração de lucro, mas, também enfatizando o papel dessas organizações “no cumprimento e promoção de direitos fundamentais”, disse.

Já a defensora pública do Rio de Janeiro Lívia Casseres, coordenadora de promoção de equidade racial da defensoria, destacou que o caso de João Alberto mostra que o sistema de justiça brasileiro está “um século atrás nessa discussão” sobre racismo. “Não compartilha dos avanços teóricos e políticos construídos na Constituição Federal de 1988, e no Estatuto da Igualdade Racial, além de avalizar e legitimar o genocídio negro e o estado de racismo estrutural que a gente vivencia”, apontou. “A gente tem que fazer esforço do enfrentamento do racismo institucional no sistema de justiça”, destacou.

Casseres ressaltou, também, a necessidade de aprovação do PDC 861. “Temos uma proposta encaminhada pela presidenta Dilma (Rousseff), em 2016, para aprovação da Convenção Interamericana Contra o Racismo, com mecanismos sofisticados, jurídicos, que tratam de discriminação indireta e do envolvimento da segurança pública. “Ela está paralisada. É um instrumento sistêmico que permite reforçar projetos de lei e legislações já existentes no enfrentamento ao racismo”, defendeu.

Posicionamento

Por Whatsapp, a assessoria de imprensa das Lojas Americanas informou que o estabelecimento não trabalham com a Vector desde 2019, diferente do que foi afirmado na comissão.

 

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