O discurso da inutilidade
A semana deixou evidente: não leve a sério o que políticos brasileiros dizem sobre a pandemia. Preste atenção, no entanto, ao que eles fazem, porque os atos revelam muito mais do que algumas palavras jogadas ao vento ou nas redes sociais. Nos últimos dias, o país assistiu a mais uma controvérsia fabricada no Palácio do Planalto, motivada apenas por interesses eleitoreiros ou com o fim de atender a grupos defensores de posições canhestras e anacrônicas, como o receio de uma ameaça comunista ou a resistência às vacinas. Ao longo dos últimos dias, o país foi obrigado a acompanhar uma discussão inútil, que em nada contribui no enfrentamento da doença que já matou mais de 156 mil brasileiros e supera os 5 milhões de casos. O Brasil sofre profundamente com a covid, mostrou-se incapaz de cumprir medidas de interesse coletivo — como o isolamento social, única ação eficaz para conter o avanço do novo coronavírus — e enfrentará, por longos anos, os efeitos de uma calamidade que devastou milhões de famílias, destruiu as contas públicas e compromete gravemente a economia, a educação, a saúde mental dos brasileiros, a vida nacional, enfim. Essas razões, por si só, seriam mais do que suficientes para que os agentes públicos tivessem mais responsabilidade ao comentar e agir sobre a covid-19. Nesse cenário de extrema dificuldade, cada avanço deveria ser celebrado. No entanto, aqui, só fazemos alimentar a discórdia, provocar a refrega, confundir, desorganizar.
Nos últimos dias, essa mobilização nociva voltou à baila com o presidente Jair Bolsonaro, que, mais uma vez, disse ser contrário à obrigatoriedade da vacina contra o novo coronavírus. Novamente, atacou o governador de São Paulo, João Doria, escolhido antecipadamente como o grande adversário para os planos de reeleição do chefe do Planalto. Chamando-o de projeto de ditador, o presidente provocou outra onda de controvérsia sobre um tema que deveria ser discutido em fórum adequado, com a participação de especialistas em políticas de combate epidemiológico. Aplicar o medicamento a toda a população constitui ato que deve contar com respaldo inequívoco da classe médica e acompanhamento rigoroso de órgãos de controle. Não é por acaso que o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, já adiantou que a judicialização será caminho inevitável, pois a discussão trata das obrigações do Estado, de garantias individuais e do direito constitucional à saúde e à vida. Vê-se, portanto, que a politização de assunto tão sério e de caráter técnico apenas confunde a opinião pública, tornando ainda mais difícil a recuperação do país a esse choque sanitário de proporções globais.
O desastre retórico só se agravou ao longo dos dias. Primeiro, João Doria anunciou, após assinatura de protocolo e vídeo gravado por Eduardo Pazuello, que o governo federal compraria 46 milhões de doses da CoronaVac. No dia seguinte, o presidente desautorizou publicamente o ministro da Saúde, que havia elogiado a produção do imunizante com a chancela do Instituto Butantan, suspendeu a compra das malfadadas doses e causou um mal-estar com os militares e os governadores. Em seguida, o ministro humilhado recebeu a visita do chefe e, em uma cena constrangedora, limitou-se a dizer que “um manda, o outro obedece, mas a gente tem carinho”. Ah, bom.
Após o barata-voa federal, apareceram os bombeiros. Chega a ser tocante ouvir o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, dizer que aposta no entendimento para superar o “diálogo zero” decretado entre Brasília e São Paulo. Também causa suspeita a declaração apressada da Anvisa de que não cederá a pressões políticas ou ideológicas para atrapalhar o progresso da vacina “sino-paulista” que estaria sendo tramada pelo governo Doria. Após as reclamações do presidente do Butantan sobre a morosidade da agência em liberar os trâmites para o imunizante, a autarquia anunciou, ontem, a importação de 6 milhões de doses da CoronaVac. Ante mudança tão brusca em questão de dias, não há como não desconfiar.
Será uma sina para o Brasil. Estamos fadados, como os nossos amigos norte-americanos, a ver uma doença calamitosa, capaz de matar centenas de milhares, tornar-se objeto de mesquinhez política por meses a fio. Os Estados Unidos preparam-se para escolher o ocupante da Casa Branca sob o jugo do novo coronavírus. E está claro que o debate fútil, superficial, imprestável e criminoso da politização também nos acompanhará por muito tempo. Para usar um termo do ex-ministro Mandetta, vítima da politização na Saúde, pobre paciente Brasil.
“Será uma sina para o Brasil. Estamos fadados, como os nossos amigos norte-americanos, a ver uma doença calamitosa, capaz de matar centenas de milhares, tornar-se objeto de mesquinhez política por
meses a fio”