Historicamente bilionárias, as dívidas da União, dos estados e dos municípios com precatórios batem recordes anuais. Nos últimos cinco anos, o montante devido a pessoas e empresas que ganharam batalhas judiciais contra a União mais que duplicou: saltou dos R$ 24,1 bilhões reservados no Orçamento de 2015, para R$ 53,4 bilhões, este ano. Para 2021, o governo federal prevê um gasto de R$ 55,5 bilhões com precatórios. O levantamento foi feito pela ONG Contas Abertas, a pedido do Correio.
Já recorrente há anos, a preocupação com o pagamento dessa dívida aumentou no mês passado, quando parte da cifra passou a ser considerada como possível fonte de financiamento do novo programa de transferência de renda que o presidente Jair Bolsonaro pretende criar no lugar do Bolsa Família, o Renda Cidadã. Depois da repercussão negativa, a ideia foi afastada pelo governo, mas abriu o debate sobre as pendências com pessoas que venceram batalhas na Justiça e esperam receber o dinheiro ao qual têm direito.
Somando a dívida da União às de estados e municípios, os valores devidos em 2019 por determinação judicial chegaram a R$ 183,6 bilhões, levando em conta, inclusive, autarquias e fundações. Os dados são do mais recente Mapa Anual dos Precatórios, divulgado na última quinta-feira pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Significa dizer que o Brasil deve o equivalente a 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB) a cidadãos e empresas que ganharam ações judiciais contra algum dos entes.
A espera costuma durar meses ou anos até que o dinheiro entre na conta, após a determinação do pagamento dos precatórios, à qual não cabe recurso. Segundo o Conselho da Justiça Federal (CJF), mais de 175,2 mil pessoas estão na fila para receber os valores em 2021. A previsão é de que, no ano que vem, sejam quitadas dívidas relativas a mais de 110 mil processos vencidos contra a União.
Os maiores valores costumam ficar no âmbito do Ministério da Economia. O ex-Ministério do Planejamento, que hoje integra a pasta da Economia, pagou R$ 91,5 bilhões em precatórios nos últimos 10 anos — recorde entre todos os órgãos da União, pelo levantamento da ONG Contas Abertas. O da Economia pagou R$ 78,4 bilhões no mesmo período. E o extinto Ministério da Previdência Social, agora também parte da Economia, desembolsou R$ 50,5 bilhões na última década para quitar precatórios.
Não é de se espantar que a reação ao anúncio de que esse dinheiro poderia ser usado para pagamento de um novo programa social tenha sido alarmante. A “rolagem” dessa dívida é vista como um calote bilionário. “A proposta vai na contramão do esforço para quitar os débitos porque protelaria a despesa. A cifra, que já aumenta todo ano, cresceria ainda mais, porque os precatórios não vão acabar, o governo simplesmente começaria a empurrar com a barriga”, diz Gil Castello Branco, fundador da ONG Contas Abertas.
“A meu ver, não diz respeito ao Judiciário, mas à contabilidade criativa, postergando despesa. Muito próximo de uma pedalada. O princípio é o mesmo: deixar de pagar e protelar para o ano seguinte”, explica Castello Branco. O especialista ressalta que, além de ser uma pedalada, é “um desrespeito ao Judiciário e aos que conseguiram ganhar causas na Justiça, provavelmente demoraram anos, e ficariam sem expectativas de receber”.
Com entendimento parecido, até a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se posicionou oficialmente e classificou como inconstitucional o uso dessas verbas para arcar com outro tipo de despesa. Seria um “calote da dívida pública judicial”, definiu, em nota publicada em setembro, após o relator do projeto que criará o Renda Cidadã, senador Marcio Bittar (MDB-AC), ter anunciado que essa seria uma das fontes de financiamento do novo Bolsa Família.
A repercussão foi tão negativa que o ministro da Economia, Paulo Guedes, precisou reforçar mais de uma vez que o governo não vai usar dinheiro reservado ao pagamento de precatórios para qualquer outra finalidade. “É preciso respeitar a lei. Precatório transitado e julgado é dívida certa, ninguém pode brincar com calote”, assegurou, em entrevista coletiva, em 3 de outubro. O relator, Marcio Bittar, ainda não divulgou qual será, então, a fonte de financiamento do programa.