Dois meses após o Congresso Nacional impedir o avanço do governo em utilizar parte do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) no financiamento de um programa social de transferência de renda, o Executivo fará nova investida para que uma porcentagem do dinheiro destinado ao fomento do ensino seja aplicado. Desta vez, a justificativa é tirar do papel o Renda Cidadã. Além transferir recursos previstos para a educação, o Palácio do Planalto defende que uma parcela do dinheiro destinado para o pagamento de precatórios – dívidas de ações judiciais do governo —, seja usada como fonte de financiamento do substituto do Bolsa Família. A proposta do governo repercutiu mal no meio político, no mercado e entre especialistas em contas públicas e em educação.
Os detalhes de como o programa será bancado foram definidos em uma reunião ontem à tarde entre o presidente Jair Bolsonaro, ministros e líderes partidários do Congresso. O novo programa social constará da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial, que trata da regulamentação dos gatilhos que devem ser acionados no caso de descumprimento do teto de gastos — emenda constitucional que limita o crescimento da despesa à inflação do ano anterior.
O senador Marcio Bittar (MDB-AC) adiantou as fontes de financiamento do Renda Cidadã. Ele explicou que a ideia do governo é destinar 2% da Receita Corrente Líquida (RCL), algo entre R$ 16 bilhões e R$ 18 bilhões, para o pagamento de parte dos R$ 55 bilhões de precatórios previstos no Orçamento. O restante, de R$ 37 bilhões a R$ 39 bilhões, seria utlizado para financiar o Renda Cidadã. A fim de garantir recursos adicionais, Bittar também vai propor a utilização de até 5% dos repasses extras da União para o Fundeb.
Essas mudanças vão mais do que dobrar o orçamento do Bolsa Família previsto na peça orçamentária do ano que vem, que é de R$ 34,8 bilhões. O valor do Renda Cidadã, ainda sem considerar os recursos do Fundeb, teria uma largada de pelo menos R$ 71,8 bilhões. “A gente tinha que arrumar uma solução. E, de onde viriam os recursos, tem muita gente incomodada. O ministro (da Economia) Paulo Guedes tinha uma proposta que não passaria no Congresso, que era a desindexação total do salário mínimo e mexer no abono salarial. Quando o presidente disse que não ia tirar do pobre para dar ao paupérrimo, matou essa proposta”, justificou Bittar, em entrevista ao Correio.
De acordo com o senador, a nova proposta foi a “única saída” para financiar o Renda Cidadã sem prejudicar a emenda do teto de gastos. Ele contou que as demais propostas sugeridas por Paulo Guedes, como a redução de subsídios, a despejotização, a taxação de lucros e dividendos, a desindexação e o congelamento de aposentadorias e do salário mínimo, não foram bem aceitas por parlamentares, empresários nem pelo presidente.
“A nova proposta não fura o teto e consegue mexer com despesas que estão no Orçamento. Para o ministro Paulo Guedes o pior cenário, já que não podia incluir a desindexação, era fazer outro extra-teto”, disse. Bittar, no entanto, ainda não definiu qual será o valor do benefício para cada um dos atendidos pelo programa. De todo modo, especula-se que as parcelas fiquem entre R$ 200 e R$ 300.
Reação
O mercado financeiro e a classe política reagiram mal ao plano apresentado para o Renda Cidadã. Ontem, o Índice Bovespa (IBovespa), principal indicador da Bolsa de Valores de São Paulo (B3), fechou o pregão em 94.666 pontos. Foi uma queda de 2,41%, na contramão da expectativa do mercado externo e das expectativas iniciais com os anúncios prometidos pelo Planalto, que incluíam as reformas tributária e administrativa. Ainda no mercado, o dólar disparou 1,42%, sendo cotado a R$ 5,636 no fim do dia. Foi o maior patamar dos últimos quatro meses.
Na avaliação de analistas, o governo estará institucionalizando uma forma de “calote” na dívida pública, ou até mesmo uma “pedalada”, indo na contramão da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e da Constituição. O especialista em contas públicas Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado, considerou as duas “muito ruins, do ponto de vista fiscal”. “Não se cancela precatório. O que se faz é jogar pra frente. Ao limitar pagamento a 2% da receita corrente líquida, você simplesmente escolhe pagar uma parte e escolhe jogar pra frente outra parte”, afirmou. Para ele, a medida de incluir o Fundeb, que está fora do teto de gastos, pode abrir uma “caixa de Pandora”, criando subterfúgios para contornar a regra.
Gil Castello Branco, secretário-geral da Organização Contas Abertas, também criticou a proposta, principalmente, o uso dos recursos do Fundeb. “O presidente disse que não iria tirar dinheiro dos pobres, mas propõe tirar das crianças e adolescentes. A ideia, além de comprometer o futuro, é uma burla ao teto de gastos. O uso de recursos dos precatórios apenas empurra dívidas com a barriga, em uma 'corrente da infelicidade', desrespeitando o Judiciário” , afirmou.
Congresso vê manobra contábil
Deputados e senadores também criticaram a insistência do governo em querer usar recursos para a educação em um programa social, especialmente porque o Fundeb está fora do limite constitucional de despesas. O entendimento, para alguns parlamentares é o de que, dessa forma, o governo estaria encontrando uma forma de driblar o teto de gastos para usar mais recursos públicos.
O que também incomoda os congressistas é o fato de o parlamento ter definido, em julho, que o dinheiro do Fundeb não poderia ser aplicado para bancar programas de assistência social. O texto — que elevou a participação da União no fundo de 10% para 23%, de forma gradual até 2026 —, conta com um dispositivo que prevê a utilização de cinco pontos percentuais na educação infantil. Por ter sugerido essa medida, o governo quer usar os 5% no financiamento do Renda Cidadã.
Proposta derrubada
Relator da PEC do Fundeb no Senado, Flávio Arns (Podemos-PR) destacou que “a possibilidade de usar recursos do Fundeb para o Renda Cidadã já foi derrotada nas votações do Congresso Nacional”. Segundo ele, “políticas de promoção social, em qualquer país do mundo, são essenciais, mas com recursos da assistência social”.
Para o líder do PSB na Câmara, Alessandro Molon (RJ), “não faz sentido retirar dinheiro da educação dos mais pobres para financiar um programa voltado aos mesmos”. “O caminho é manter intactos os recursos do Fundeb e buscar recursos para uma renda básica na reforma tributária. O que fica claro é que o governo não quer tirar os recursos dos superricos, mas sim da educação dos mais pobres”, ponderou.
Em uma rede social, o ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU), disse que uma emenda constitucional até pode mudar o teto de gastos, mas destacou que “o problema é o significado político para o compromisso com gestão fiscal responsável”. “Inflar o Fundeb para, em seguida, dele tirar 5% para financiar outro programa, é rigorosamente o mesmo que inserir mais uma exceção no parágrafo 6º do art. 107. Por que não fazê-lo às claras?”, questionou.
“Sobre usar dinheiro de precatórios, também parece truque para esconder fuga do teto de gastos: reduz a despesa primária de forma artificial porque a dívida não desaparece, apenas é rolada para o ano seguinte. Em vez do teto estimular economia de dinheiro, estimulou a criatividade”, completou Dantas.
Educadores reagem à proposta
O presidente da União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme), Manoel Humberto Gonzaga Lima, alega que não há justificativa plausível para a destinação de verbas do Fundeb a qualquer programa social. “Na nossa opinião, esse remanejamento é inadmissível sob qualquer argumento que possa ser apresentado. Não é e nunca foi a finalidade do Fundeb esta forma de utilização dos recursos”, defende.
Quem perde principalmente, na avaliação de Gonzaga, são os municípios mais vulneráveis. “Com certeza os municípios, com maior carência de financiamento, seriam os grandes prejudicados e sem alternativa para substituir estes recursos porventura remanejados para outro programa de finalidade totalmente inversa”. A análise da presidente-executiva do Todos pela Educação, Priscila Cruz, complementa o raciocínio. Ela afirma que o remanejamento pode aumentar ainda mais a disparidade educacional vivida no país.
“Isso acaba penalizando duplamente os municípios mais pobres, que, durante a pandemia, já tiveram maior dificuldade para garantir um ensino remoto. São escolas que têm uma infraestrutura pior, cidades com uma conectividade internet pior, uma população com menos acesso. Então estamos falando daqueles que já enfrentaram com mais dificuldade os efeitos da pandemia na educação e que, pelo contrário, deveriam ter mais recursos para poder se recuperar. Mas, com essa medida, é retirar de quem mais precisa”, explica.
Para Priscila, o país vive um dos momentos mais críticos da educação, e não há nada que justifique a decisão, “a não ser um interesse mais imediato, eleitoreiro, querendo tirar do futuro, para trazer para o mais presente possível a fim de ganhar um bônus político emergencial. Não que a renda não seja importante, mas não com recurso da educação. O Fundeb é dinheiro da educação”, defende.
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