Entrevista

'Brasil precisa de mais interesse nacional', diz ex-embaixador nos EUA

Membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint), da Universidade de São Paulo (USP), Barbosa alerta para os riscos do que ele chama de "ideologização" do atual governo brasileiro

Um dos mais destacados representantes da diplomacia brasileira, o embaixador Rubens Barbosa concluiu carreira no Itamaraty há 16 anos e, hoje, dedica-se a discutir os temas mundiais como diretor-presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), sediado em São Paulo. Embaixador em Londres, de 1994 a 1999, e em Washington, D.C., de 1999 a 2004, ele concedeu entrevista ao Correio, na qual analisou os posicionamentos adotados pelo Brasil em importantes questões globais, como a pandemia, o meio ambiente, a economia e a geopolítica.


Membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint), da Universidade de São Paulo (USP), Barbosa alertou para os riscos do que ele chama de “ideologização” do atual governo brasileiro no alinhamento automático com os Estados Unidos. “A política externa não pode estar a serviço de partidos nem de ideologias; a política externa tem que refletir o interesse nacional”, frisou, citando uma frase de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão de Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira.
Barbosa também mencionou vários casos que, segundo ele, demonstram que o apoio incondicional a Washington tem empurrado o Brasil para um isolamento, cada vez maior, no cenário mundial, além de ser um desgaste para a relação com a China, principal parceiro comercial do país.

Que desafios a pandemia trouxe para as exportações brasileiras?
A maneira como o governo, nos três níveis — federal, municipal e estadual —, tratou essa questão da pandemia acrescentou mais um elemento de incerteza e de crítica no exterior em relação ao Brasil. Acredito que, além da política ambiental, a política de saúde, a maneira como, nesses sete ou oito meses, a pandemia, foi tratada aqui no Brasil acrescentou mais um elemento que afetou, que está afetando, a credibilidade do Brasil, no exterior, porque se desconsideraram as opiniões científicas sobre como tratar a pandemia, como tratar a questão do isolamento, como tratar a questão da saída do isolamento. Isso foi muito notado no exterior.

Há poucos dias, a China detectou o novo coronavírus em asas de frango congeladas que foram
importadas do Brasil. Quais são os reflexos disso para o Brasil?
Essa questão da China é discutível. A notícia chegou truncada, não se sabe se era dentro do frango, na asa, fora do frango, tanto que, até agora, não houve nenhuma consequência em relação à suspensão ou à proibição de exportação de frango para a China. Vamos aguardar, a gente não sabe exatamente o que pode acontecer. Agora, de qualquer maneira, essa questão da fiscalização e do controle sanitário, nós vamos ter de aumentar muito, porque a gente já sofreu no passado, com a vaca louca, por falta de resposta a um formulário do Canadá de questões técnicas sanitárias.

Qual é a importância da política ambiental do Brasil para as exportações do país?
A gente tem de reconhecer que a questão ambiental está incluída na agenda global. Quem não aceitar isso, não está entendendo o que está acontecendo. Isso quer dizer que apareceu um novo personagem, que não existia há 40, 50 anos, nessa questão ambiental: o consumidor. Ele, hoje, tem uma influência muito grande na área comercial e na área governamental, inclusive, nos países que compram do Brasil. Há uma onda verde na Europa. Acho que nos Estados Unidos também. No caso das empresas industriais, que compram, vendem para o Brasil, há disposições, e nós vimos isso até com os bancos, agora. Há disposições contra negócios com produtos brasileiros que sejam de áreas que impliquem no desmatamento da Amazônia. Já há cláusulas contratuais.

O senhor acredita que a política ambiental brasileira pode inviabilizar a ratificação do acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia?
A política ambiental passou a ser parte das negociações comerciais. O acordo entre Mercosul e União Europeia tem um capítulo novo, que se chama desenvolvimento sustentável. Nele, estão incluídos todos os acordos de meio ambiente que o Brasil assinou no passado. O governo atual os referendou. Então, há compromissos de meio ambiente, de mudança de clima, de proteção à floresta, proteção ao indígena. E o fato de você aceitar a necessidade de cumprimento desses acordos faz com que o descumprimento acarrete consequências.

Essa pressão também tem vindo de representantes do Partido Democrata dos EUA. O que pode acontecer ao Brasil, nessa área, com uma eventual vitória de Joe Biden nas eleições americanas?
As manifestações foram de democratas e de republicanos também. O Departamento de Estado, o Congresso, vários deputados dos dois partidos e, agora, Kamala Harris (senadora democrata, candidata a vice na chapa de Biden) manifestaram-se publicamente criticando a política ambiental brasileira. Então, se Biden ganhar essa eleição, certamente os Estados Unidos vão mudar sua política ambiental. Eles vão entrar no Acordo de Paris, que Donald Trump não quis, e vão passar a defender uma política econômica com grande componente ambiental, de preservação do meio ambiente. E, aí, eles vão ser muito críticos de países que não preservem o meio ambiente. Então, aqui, você vai ter um elemento adicional de pressão sobre a política brasileira; não só à política, mas, também, à retórica ambiental brasileira.

Quais são as falhas da política ambiental brasileira?
Você tem as políticas públicas que foram adotadas pelo governo que enfraqueceram a fiscalização, que negligenciaram o combate às ilegalidades, porque o mais grave dessa questão ambiental é que o problema ambiental está ligado a ilegalidades, e o governo tem obrigação de coibir. Ilegalidade no desmatamento, ilegalidade nas queimadas e ilegalidade no garimpo. E também cuidar, porque, no exterior, tem muito foco disso: cuidar dos indígenas. Está na legislação, na Constituição. Essa posição negacionista do governo é um problema aqui, não é um problema lá de fora. No momento em que você corrigir os problemas que estão aqui, acaba a disputa lá fora.

Como deve ficar a relação entre Brasil e Estados Unidos com uma eventual vitória de Joe Biden?
Eu acho que se o Biden for eleito, primeiro, você vai ter uma mudança no relacionamento entre os presidentes. Quer dizer, o presidente Bolsonaro não vai ter a intimidade que ele tem com Trump, porque (a candidata) a vice-presidente tem uma posição muito forte sobre o Brasil, e Biden tinha ligação com o Brasil quando ele era vice-presidente. E, certamente, vai delegar para Kamala a relação com a América Latina, porque o presidente, nos Estados Unidos, não tem uma função específica. Então, delega funções. Se o Biden delegar a Kamala o acompanhamento das relações com a América do Sul, é ela que vai cuidar do Brasil. Kamala tem uma posição muito crítica, há uma nota dela criticando a posição do Brasil na política ambiental e na destruição da floresta.

Acredita que o isolamento do Brasil na comunidade internacional vai aumentar com uma eventual vitória de Biden?
Os Estados Unidos vão mudar de posição em relação aos organismos internacionais — a ONU (Organização das Nações Unidas), a OMC (Organização Mundial do Comércio), a OMS (Organização Mundial da Saúde), enfim, todas as organizações. Nós vamos ficar mais isolados, porque, hoje, nas questões do Oriente Médio, a gente só fica do lado de Israel e dos Estados Unidos. Se os Estados Unidos mudarem de posição, o Brasil vai ficar ainda mais isolado.

Os interesses nacionais estão preservados nesse alinhamento automático com os EUA?
Aconteceu um fato, que é objeto de um artigo que eu estou escrevendo, que é uma coisa atual, porque saiu uma nota do Itamaraty, em conjunto com o Ministério da Economia (de 17 de junho de 2020), que, até o momento, não provocou reações. É uma nota sobre a presidência do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). Essa questão da presidência do BID é muito importante, por quê? O BID foi criado em 1959. Os Estados Unidos são o maior contribuidor do BID, com 30% do capital. O Brasil é o segundo. A União Europeia está lá em cima também. E ficou acertado que a sede do BID seria em Washington, que a vice-presidência seria sempre dos Estados Unidos, e a presidência do BID seria sempre de um latino-americano. Então, nesses 60 anos, todos os presidentes do BID foram latino-americanos. Agora, era a vez do Brasil. O Brasil apresentou um candidato. Paulo Guedes (ministro da Economia) comunicou ao secretário do Tesouro americano que o Brasil ia ter um candidato. Acontece que, agora, Trump resolveu quebrar essa tradição de 60 anos e atropelou o Brasil apresentando um candidato americano. E o Brasil emitiu nota apoiando a posição americana e abrindo mão da candidatura brasileira!

Há disputa EUA x China por trás dessa polêmica na eleição para o BID?
Eu acho que sim. Eles estão trazendo, aqui para a região, a questão geopolítica. A razão desse interesse de Trump pela presidência do BID é porque o BID financia projetos aqui na América do Sul sem nenhuma politização, sem nada, só baseado em projetos. Agora, eles vão financiar de acordo com os países que boicotarem a China. O Brasil não pode entrar nessa disputa geopolítica, porque não é um país pequeno. O Brasil é uma das 10 maiores economias, é o quinto ou o sexto maior território, quinta ou sexta maior população. Então, nós temos interesses variados, nós somos global player. Os Estados Unidos vão exigir lealdades. Isso contraria o interesse brasileiro. O Brasil precisa de menos geopolítica e ideologia e de mais interesse nacional.

Como avalia o apoio do Brasil à proposta dos EUA de discutir se países que não são economia de mercado podem ser membros da OMC, o que, na prática, excluiria a China da organização?
Essa proposta foi apresentada no último dia útil de trabalho da OMC. Não foi discutida. Ela foi apresentada, e nenhum outro país apoiou, só o Brasil. E, aí, se suspenderam os trabalhos, porque entraram de férias. Agora em setembro, esse assunto vai voltar, e a gente vai ter de ser coerente e defender essa posição, que vai desgastar o Brasil perante a China. Acho que essa proposta não vai prosperar, porque não há acordo. Os Estados Unidos querem é que se mudem as regras da OMC para permitir que somente economias de mercado possam ser membros da OMC, porque havia um período de transição para a China se tornar uma economia de mercado, e passou o período de transição, e a China é considerada uma economia de mercado. Os Estados Unidos querem reabrir esse assunto para que a China possa ser considerada uma economia não de mercado, e como uma economia não de mercado não pode pertencer à OMC. É um desgaste desnecessário do Brasil perante a China.

O alinhamento automático do Brasil com os EUA trouxe mais benefícios ou prejuízos?
A relação institucional entre as burocracias dos dois países continuam com o trabalho. Em termos de resultado, eu não vejo nem grandes vantagens nem grandes desvantagens, porque o relacionamento institucional segue com as qualificações que as duas burocracias fazem. Por exemplo, do lado do que não aconteceu: o Brasil queria ter uma posição especial na questão de vistos para os Estados Unidos. Isso não aconteceu. O lado positivo que houve foi a aprovação do acordo de salvaguardas tecnológicas que vai permitir o uso da Base de Alcântara (no Maranhão).

E a defesa de Trump pela entrada do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico)? Como o senhor avalia?
O Brasil pediu (ingresso na OCDE), e Trump apoiou a Argentina. Depois, com a eleição de Cristina Kirchner como vice de Alberto Fernández, aí, os Estados Unidos mudaram, mas não por causa do Brasil, por causa da Argentina.

A implantação da tecnologia 5G é outro campo de disputa entre EUA e China na América do Sul. Como analisa a postura do Brasil?
O Brasil não deveria tomar partido e deveria abrir a licitação para todos os países. E o resultado da licitação deveria ser o que fosse mais favorável ao Brasil. Acho que esse é o exemplo mais forte dessa questão geopolítica sendo trazida aqui para a região. Acho que o adiamento dessa licitação não resolve; ao contrário, a licitação deveria ser feita imediatamente, porque, quanto mais cedo o 5G entrar no nosso cenário, mais rapidamente o Brasil vai sair da crise. O 5G poderia ajudar o Brasil a sair da crise porque ia modernizar, mais rapidamente, a economia e as indústrias, para a indústria nacional chegar ao 4.0, porque há redes privadas que as indústrias poderão utilizar imediatamente.

O presidente Jair Bolsonaro prometeu acabar com o que chamou de “viés ideológico”
na diplomacia brasileira. Essa promessa foi cumprida?
Estou à vontade para falar sobre isso, porque fui um dos críticos mais fortes da política externa do PT enquanto eles partidarizaram e ideologizaram a política externa. Agora, está havendo a mesma coisa; está havendo ideologização da política externa com sinal trocado. Mas, você tem as prioridades da política externa, que não se alteraram, nem com os governos anteriores nem com este. Se você fizer uma listagem das principais prioridades, elas são as mesmas. O problema é a questão da ideologização e da partidarização. Eu acho que, como Rio Branco (patrono da diplomacia brasileira) afirmava: ‘A política externa não pode estar a serviço de partidos nem de ideologias; a política externa tem de refletir o interesse nacional’. Eu disse isso durante os anos do PT e estou continuando a repetir agora.