Há quase três meses, o ministério mais importante para o enfrentamento da covid-19 no Brasil funciona em modo provisório. Ontem, a pasta acumulou mais uma marca: 100 mil mortos pela doença. Apesar dos números catastróficos e das críticas pesadas e frequentes ao governo federal, o general da ativa Eduardo Pazuello mantém-se no cargo de ministro interino — até ontem, não havia sinais de que deixaria a cadeira. Em meio às queixas de que o ministério está sob comando de um militar e não de um especialista na área, a gestão de Pazuello segue viva no tiroteio. Certamente não agrada a opinião pública e de vários especialistas, mas tem atenuado a polarização em alguns setores envolvidos no enfrentamento da pandemia — como, por exemplo, secretários estaduais e municipais de Saúde. Para evitar mais desgastes em um assunto tão controverso e dolorido para o Brasil, Pazuello faz aparições discretas e procura se afastar de polêmicas. Por desviar dos holofotes, pode ter a passagem pelo Ministério da Saúde mais prolongada do que o previsto.
A ideia inicial era de permanecer na pasta por 90 dias. Agora, Pazuello afirma não haver prazo para encerrar a interinidade. “Na hora que achar que a missão acabou, vou falar para o presidente que a missão dada inicialmente foi cumprida. Se ele quiser que eu permaneça, eu vou permanecer. Se ele disser ‘muito obrigado’, volto para o quartel. É simples", disse Pazuello ao Correio. Ele diz ter uma relação direta com o chefe do Planalto.
“O presidente e eu temos a mesma origem. A gente fala com muita retidão, sem floreios”, comenta. Prestigiado, Pazuello participou, na última quinta-feira, na live presidencial. Confirmou a Bolsonaro que o país chegaria neste fim de semana à marca de 100 mil mortes. E ouviu o presidente dizer: “Vamos tocar a vida”.
À frente do ministério, Pazuello também foi alvo de pressão frequente entre os integrantes militares do governo Bolsonaro: a saída do quadro de generais da ativa para entrar na reserva. No entanto, o general não vê problema em conciliar a atual condição na carreira militar com o comando da pasta. “Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Você pode ser da ativa e ficar agregado até dois anos”, argumenta.
O primeiro passo que Pazuello deu para mudar a relação com os secretários foi familiarizar-se com o Sistema Único de Saúde (SUS) — Pazuello admite que desconhecia o funcionamento do sistema antes de assumir a pasta. “A compreensão do que é e quais são as responsabilidades, direitos e deveres do SUS é a primeira coisa que faz você mudar. Eu não abro mão de trazê-los (secretários de Saúde) para discutir os problemas. Eles têm que estar comigo e têm que tomar decisões juntos. Isso é a lei. Enquanto você não compreende isso, você passa a ter atrito”, explica o interino.
Para o presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Carlos Lula, a falta de especialização de Pazuello na área não é a principal ressalva por parte dos membros. “Temos, na história, a condução de ministros que não eram da área da saúde, como o senador José Serra. Não podemos negar os avanços enquanto ele chefiou a pasta. Mas, nos quadros técnicos, e sobretudo nas secretarias com foco estritamente técnico, é complicado ter militares no comando”. Junto a Pazuello, um time com mais de 20 militares passou a integrar o ministério em cargos de logística, estratégia e coordenação.
Apesar disso, a composição atual tem agradado os secretários estaduais. “A maioria avalia a gestão como positiva, pela melhora em relação à entrega de insumos, equipamentos e o diálogo. A gente conseguiu conversar novamente com o Ministério da Saúde, isso é muito positivo. Mas, a simples harmonização é insuficiente. A gente precisa de uma coordenação nacional”, avalia Carlos Lula. Além de presidir o Conass, ele é secretário de saúde do Maranhão.
Cloroquina
Mas, há críticas bem mais severas. Para o especialista em gestão de Saúde da FGV Walter Cintra, a passagem de Pazuello tem falhas gritantes. “Leal ao seu presidente, Pazuello manteve a compra da cloroquina. Sob a direção do general, o ministério também tem falhado na execução do orçamento disponibilizado para o enfrentamento da pandemia”.
O Tribunal de Contas da União (TCU) acompanha o uso de R$ 76 bilhões destinados ao combate à covid. O Ministério Público junto ao TCU também protocolou pedido para que o tribunal investigue superfaturamento na produção de cloroquina pelo Exército Brasileiro, que passou a fabricar 84 vezes mais o volume do medicamento, por determinação do presidente.
Cintra também menciona como episódio grave a tentativa do governo de modificar a divulgação dos dados oficiais sobre a covid-19. E não poupa ataques. “No momento que o Brasil enfrenta uma das maiores crises sanitárias de sua história, o governo Bolsonaro promove o desmonte do Ministério da Saúde com consequências genocidas”, dispara.
É neste cenário adverso que Pazuello trabalha. Apesar dos esforços do ministro interino em focar na atenção aos estados e municípios, a pandemia e seus efeitos vieram implacáveis. Em 16 de maio, quando Pazuello foi anunciado como interino no ministério, o Brasil contabilizava 15 mil vítimas e 230 mil infectados pela covid-19. Quase 90 dias depois, o país ultrapassou os 100 mil mortos e 3 milhões de casos.
Nesse intervalo de tempo, o general foi alvo de diversos ataques e teve de recuar em algumas ocasiões. Uma delas ocorreu quando o Ministério da Saúde foi obrigado, por determinação do STF, a divulgar os dados consolidados de óbitos, deixando de lado uma obscura metodologia de mortes notificadas e mortes confirmadas. Em julho, Luiz Henrique Mandetta afirmou que os militares na Saúde entendem de “balística” e não de “logística”.
Mais recentemente, o ministro do STF Gilmar Mendes juntou-se ao coro contrário à militarização do MS. Disse haver um “vazio” de comando e que o Exército estaria se associando a um “genocídio”. A crítica motivou reações que extrapolaram a alçada do Ministério da Saúde. Em nota, o Ministério da Defesa repudiou as declarações de Mendes e afirmou o compromisso das Forças Armadas no enfrentamento da pandemia.
Diante das situações controversas, Pazuello abstém-se das polêmicas. Prefere utilizar uma linguagem neutra, sem teor politizado. “Estamos falando de saúde, de brasileiros, brasileiras, filhos, pais, mães. É inacreditável acreditar que possa ser política. Não tem política na saúde. Da minha parte, nunca terá e nem pode ter”, afirma o general.