Lei da selva na Amazônia
O Brasil registrou, ontem, mais uma estatística lamentável em relação ao meio ambiente. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) indicam que a área destruída na Amazônia aumentou 34% de agosto de 2019 a julho de 2020. Estamos falando de 9.205km² de árvores abatidas na região no intervalo de 12 meses. É como se, de um ano para outro, sumisse do mapa uma área quase duas vezes maior do que o Distrito Federal. A frieza dos números é insuficiente para mobilizar as autoridades brasileiras, constantemente acusadas de omissão no enfrentamento das inúmeras atividades ilegais em curso na Amazônia. Ao comentar a sangria ecológica em andamento, numa crítica aos dados compilados pelo Inpe, o vice-presidente Hamilton Mourão mencionou a precariedade do sistema de vigilância nacional para impedir a ação de grileiros e garimpeiros. O Brasil, no entendimento do vice-presidente, não dispõe de monitoramento efetivo da vegetação da Amazônia; conta apenas com equipamentos que oferecem uma ideia aproximada da devastação no solo e no subsolo das terras brasileiras.
A crítica de Mourão, na verdade, revela outra questão: o que conhecemos a respeito da destruição da Amazônia é uma fotografia borrada da realidade. O inferno verde pode ser muito pior. Dito de outra forma, não sabemos, com acuidade, a medida da degradação ambiental. Em uma analogia com outra tragédia nacional, é como se não tivéssemos testagens suficientes para detectar o avanço da pandemia do novo coronavírus. Apesar do terraplanismo sanitário que resiste no país, ultrapassamos a fase de que enfrentávamos apenas uma “gripezinha” ou uma mera versão da H1N1. Sabemos, hoje, que a covid chegará, oficialmente, a 100 mil mortos e avança em direção a 3 milhões de casos. Nada disso seria possível se o país não tivesse tomado consciência, ainda que tardiamente, de uma calamidade sem precedentes em curso.
A diferença entre a pandemia e o desmatamento na Amazônia é que esta última trata-se de uma doença crônica. À semelhança da covid, porém, acostumamo-nos à devastação. As queimadas tornaram-se algo tão banal que há quem diga que se trata de um “fenômeno cultural”, sendo, portanto, uma realidade difícil de combater. Sofisma perigoso é, por outro lado, afirmar que índios precisam ser retirados da redoma e devem exercer o direito de explorar economicamente as terras. Ou, nas palavras de Mourão, é preciso “parar de tapar o Sol com a peneira e entender que o indígena tem o direito de explorar a terra dele dentro dos ditames da legislação”. É muito difícil acreditar que o problema do desmatamento na Amazônia decorre dos índios, quando sabemos que o interesse pela exploração predatória da terra atende a grupos muito mais poderosos do que as etnias que habitam o solo amazônico.
A questão é que não se pode discutir a destinação da Amazônia sem antes livrá-la do jugo da ilegalidade. Trata-se de temeridade falar em “ambientalismo de resultados” quando a região é alvo de constantes agressões criminosas. A Amazônia precisa, antes de tudo, ser entendida como área na qual o respeito às leis e aos interesses do país devem prevalecer. Tivesse o Brasil uma política ambiental transparente, com um Ibama recuperado do desmonte e as Forças Armadas em condições de preservar a integridade da natureza, possivelmente reuniríamos condições para, aí sim, discutir desenvolvimento sustentável, respeito aos povos indígenas e preservação da biodiversidade. Seria possível, ainda, apresentar a investidores e à opinião pública nacional e internacional uma resposta mais consistente do que as declarações mal-humoradas de Paulo Guedes.
No debate econômico sobre a Amazônia, convém relativizar a urgência de implementar o que se tem chamado de “ambientalismo de resultados”. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, afirma reiteradamente que o agronegócio brasileiro já detém uma produção extraordinária sem precisar avançar sobre a vegetação amazônica. Trata-se de um falso dilema considerar a Amazônia como espaço econômico subaproveitado ou obstáculo para o desenvolvimento. Mais urgente e desafiador é recuperar a economia para atender à legião de 13 milhões de desempregados nos centros urbanos brasileiros — particularmente, no cenário pós-pandemia. Aqui, sim, é preciso encontrar maneiras de qualificar o trabalhador brasileiro, aumentar a produtividade nacional, reduzir a carta tributária das empresas, incentivar o empreendedorismo. São muitas as necessidades da economia urbana, onde está a maioria da população brasileira. É na selva de pedra que se concentram grandes necessidades. A Amazônia, antes de se submeter à lógica econômica, precisa da proteção das leis. E é dever do Estado assegurar-lhe esse direito.
Nesse sentido, convém lembrar que a Amazônia não constitui apenas assunto do Executivo federal. Assim como têm demonstrado preocupação sobre o avanço da pandemia, o Legislativo e o Judiciário também precisam contribuir para preservar e prosperar a riqueza natural que privilegia o Brasil.