A Câmara proibiu deputados de usar o dinheiro da cota parlamentar para contratar serviços que gerem lucro na internet. A medida foi tomada após o Estadão revelar que parlamentares estavam transformando a divulgação de atividades no Congresso num negócio privado ao monetizar seus canais no YouTube, com vídeos que arrecadam recursos de acordo com o número de visualizações. A prática vem sendo chamada de "toma lá, dá cá" nos corredores do Congresso.
"Era importante resolver esta polêmica", afirmou ao Estadão o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Ele assina o ato da Mesa Diretora publicado ontem com a nova regra. A decisão, no entanto, foi tomada em reunião no dia 22 de julho, dez dias após a reportagem do jornal mostrar que ao menos sete deputados estavam ganhando dinheiro dessa forma.
Na lista estão Carla Zambelli (PSL-SP), Joice Hasselmann (PSL-SP), Bia Kicis (PSL-DF), Otoni de Paula (PSC-RJ), Paulo Pimenta (PT-RS) e Flordelis (PSD-RJ), que contrataram empresas com dinheiro da cota parlamentar para fazer edição e montagem dos vídeos apresentados em seus canais no YouTube. Destes, apenas Pimenta e Otoni de Paula disseram à reportagem ter desistido da monetização.
"Não será objeto de reembolso despesa com a aquisição ou a contratação de serviços utilizados em benefício de contas em sites, redes sociais ou plataformas digitais que resultem em monetização, lucro, rendimento, patrocínio ou receita de qualquer espécie em favor do respectivo parlamentar ou de terceiros", determina o ato da Câmara.
Na justificativa, o presidente da Casa diz ainda que o objetivo da nova regra é vedar reembolsos de despesas com serviços que resultem em vantagens financeiras ao parlamentar ou a terceiros
Com base na reportagem do Estadão, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) pediu a abertura de uma investigação. "Além de ser dinheiro público, se ficar comprovado o uso ilegal do poder da informática, a democracia brasileira acaba", disse à época o subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado. Especialistas dizem que a prática fere princípios da administração pública.
A nova regra da Câmara, no entanto, não abrange casos em que o parlamentar utiliza seus assessores, também pagos com dinheiro público, para alimentar os canais na internet e lucra com as visualizações. É o caso da deputada Gleisi Hoffmann (PT-PR), presidente da legenda, que informou já ter faturado R$ 32,3 mil desta forma. Além dela, apenas Carla Zambelli (R$ 15,1 mil) e Otoni de Paula (R$ 2 mil) disseram quanto receberam da plataforma de vídeos.
Otoni elogiou a restrição imposta por Maia. "Acho corretíssima a decisão da Câmara de regulamentar essa questão", afirmou o deputado do PSC. Ele disse ter desativado a monetização do seu canal logo após ter sido procurado pela reportagem do Estadão, no início do mês.
Assinatura
O canal mais talhado para o negócio do YouTube é o Joice Hasselmann TV. Com 937 mil inscritos e uma soma de 200 milhões visualizações de vídeos, o canal oferece até assinatura, ao preço de R$ 7,99 mensais. Quem assina se torna membro do canal e tem direito a "selos de fidelidade ao lado do seu nome em comentários e no chat ao vivo" e a "um bate-papo semanal exclusivo, olho no olho" com a parlamentar.
Joice pagou R$ 27,5 mil à Agência EG, entre agosto de 2019 e maio de 2020, para serviços que incluem o YouTube, segundo as notas fiscais reembolsadas pela Câmara.
Questionada ontem sobre a nova norma, que a impede de usar recursos públicos para alimentar o canal, Joice afirmou que a regra "não muda nada" suas atividade nas redes. Ela nega utilizar a cota parlamentar para produzir seus vídeos. "A descrição do serviço da empresa foi feita de forma genérica na contratação (redes sociais), mas foi um erro bobo. No meu YouTube ninguém mexe, só eu", afirmou ela. A deputada disse não saber quanto já ganhou do YouTube.
Senado
A prática também ocorre no Senado, que não tomou nenhuma medida para restringi-la. Em seu primeiro mandato, Jorge Kajuru (Cidadania-GO) admite usar assessores pagos pela Casa para gerir um canal no YouTube que devolve lucros para o parlamentar. Os vídeos na plataforma arrecadaram um total de R$ 48.339,72 desde que o senador assumiu o mandato, em 2019, conforme ele mesmo informou.
"Para mim, desde que eu nunca use um centavo da cota parlamentar, não vejo nada de imoral na manutenção da parceria que tenho há mais de 10 anos com o YouTube, a plataforma que me remunera de acordo com as visualizações dos meus vídeos. Fiz antes de ser eleito senador e seguirei fazendo assim que encerrar meu mandato, em 2026, pois não continuarei na política, mas continuarei ativo nas redes sociais", escreveu o senador, no último dia 15, em resposta aos questionamentos da reportagem.
Pelo menos outros cinco senadores, incluindo Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro, também ganham dinheiro com publicidade em seus canais no YouTube. Nenhum deles, contudo, usou recursos da cota parlamentar - paga pelo Senado para despesas do gabinete - na gestão dos canais. Também negam usar assessores para produzir os vídeos.
Procurado ontem para comentar a decisão da Câmara, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), não se manifestou.
Para Valdir Simão, ex-ministro do Planejamento e da Controladoria-Geral da União (CGU), alguns parlamentares poderiam nem saber que feriam princípios da administração pública ao lucrar com seus canais pela ausência de norma sobre a questão. "A partir da regulamentação se tem clareza sobre como lidar com esse tema. O registro é de cumprimentar a Câmara", afirmou.
Reportagem revelou prática
O Estadão mostrou em 12 de julho que deputados da base governista e da oposição transformaram a divulgação da atividade na Câmara em um negócio privado. Eles recorreram a empresas contratadas com dinheiro da cota parlamentar e assessores pagos pela Casa para gerir canais monetizados no YouTube, com vídeos que arrecadam recursos de acordo com o número de visualizações. A reportagem identificou pelo menos sete parlamentares que ganham dinheiro dessa forma. Para especialistas, a prática da "monetização" fere princípios da administração pública e pode haver casos de conflitos de interesse.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.