Entre as lições que podemos tirar da pandemia da Covid-19, a principal delas não seria a de que a saúde é nosso maior bem individual? Mas, como garantir um sistema eficaz e inovador, com a desejada sustentabilidade da saúde em seus diversos aspectos? Com acesso universal sem qualidade ou, porque o cobertor é curto, melhor que continue limitado? Como a inovação pode ser incorporada, voltada ao bem-estar e beneficiar todas as pontas? O que fazer no pós-pandemia? E quem, afinal, paga a conta da saúde?
Algumas respostas para essas e outras questões pertinentes surgiram nos debates online da terceira edição do Global Forum – Fronteiras da Saúde, reunindo autoridades, médicos, economistas, empresários, pesquisadores e outros agentes da sociedade. Uma agenda robusta, com 62 painelistas, dos quais sete internacionais, em mais de 25 horas. Foi promovido pelo Instituto Lado a Lado pela Vida que, de forma visionária, já em 2019, antes da crise sanitária, chamava a atenção sobre a situação financeira da saúde, ou “haveria um colapso no Brasil”.
Conforme Edson Araújo, economista sênior do Banco Mundial, o Brasil gasta pouco em saúde e gasta mal. Como sair do dilema? O que propor no plano político para corrigir tal distorção? A maioria dos palestrantes acha difícil uma correção legal futura no que diz respeito à amarração constitucional que hoje direciona recursos públicos para o Sistema Único de Saúde (SUS) e, também, para a Saúde Suplementar (rede privada), na forma de renúncia fiscal, subsídios, gastos tributários.
Se, por um lado, a pandemia escancarou a inconsistência e defasagem tecnológica de dados no sistema de saúde, foi graças à inovação que o mundo está podendo respirar, pela pronta disponibilização de vacinas. Agora, todos concordam que a redução das vulnerabilidades pós-pandemia passa por investimentos tecnológicos maciços em todo o ciclo – prevenção, diagnóstico precoce e gestão. E sistemas de saúde mais conectados e focados na prevenção.
Acesso sem cobertura
“A inovação e a inquietude estão impregnadas no DNA do Instituto Lado a Lado e foram essas as características que nos levaram a criar o Global Forum – Fronteiras da Saúde”, explicou Marlene Oliveira, fundadora e presidente da organização sem fins lucrativos, que, há 13 anos, mantém ações contínuas em prol de uma saúde de qualidade para os brasileiros. Um exemplo é a campanha “Novembro Azul”, criada pelo instituto para prevenção e cuidados da saúde integral do homem.
“A inovação e a inquietude estão impregnadas no DNA do Instituto Lado a Lado e foram essas as características que nos levaram a criar o Global Forum – Fronteiras da Saúde”, explicou Marlene Oliveira, fundadora e presidente da organização sem fins lucrativos, que, há 13 anos, mantém ações contínuas em prol de uma saúde de qualidade para os brasileiros. Um exemplo é a campanha “Novembro Azul”, criada pelo instituto para prevenção e cuidados da saúde integral do homem.
Mais distorções: segundo o médico José Eduardo Fogolin, o desenho do sistema de saúde brasileiro já começou torto: nasceu com o saneamento, passou pela educação, foi juntar-se à Previdência e acabou salvo pela Constituição de 1988. Mas há problemas graves de sustentabilidade. “A gente garantiu acesso universal, e não cobertura universal”, afirmou, ao explicar que o SUS é financiado com o equivalente a 4% do PIB; o sistema privado com 5%, mas cerca de 85% da população busca o SUS.
No gancho da provocação, Daniel Greca, diretor de Saúde Populacional do Hospital Sírio-Libanês, pergunta: “O que é pior? Acesso sem qualidade ou nem ter acesso? Por mais que não se consiga oferecer tudo para todos, para honrar a equidade, integralidade e o acesso universal, se for esperar o cobertor cobrir todo mundo, a gente nunca vai dar o primeiro passo”. Posição acordada por Marlene, que afirmou na abertura: “Não é viável a promessa do tudo para todos, mas temos que lutar para o tudo para quem precisa, na hora certa!”
Medicina Digital
A adição de novas tecnologias na saúde, com impacto em todas as áreas da saúde, foi objeto de inflamadas exposições no evento, com foco no uso da inovação para a modernização do instrumental. Um dos legados da pandemia foi a ciência passar a ser parte do dia a dia da população, “um ponto muito positivo”, segundo Fábio Moreira, médico e professor de MBA da FIA e da USP.
Defasagens e nichos para incorporação tecnológica foram apontados por especialistas e representantes de empresas inovadoras. Para suprir, só com investimentos. Em ciência, pesquisa e educação, principalmente, sendo a qualificação em tecnologia, essencial. Mas a ênfase ficou por conta da aceleração tecnológica. Avanços impulsionados pela pandemia. O salto na busca científica e feitura das vacinas. O uso do virtual em diversas formas de socorro a vitimados pelo coronavírus. A revolução da Telemedicina.
“Vivemos momentos tristes de necessidade de assistência, mas crescemos muito, talvez 50 anos, em telemedicina”, disse o médico cardiologista, professor e empresário Manoel Canesin, presidente do Paciente 360. “Estamos vivendo uma medicina muito digital; o consumidor mudou a forma de se relacionar com a saúde. Havia muitas barreiras para utilizar ferramentas digitais, porque a saúde é muito olho no olho”, disse a bioquímica Lídia Abdalla, presidente executiva dos laboratórios Sabin.
“O poder da inovação foi um grande aprendizado, e também o poder de trabalhar de jeito cooperativo”, pontuou Hugo Nisenbom, presidente da MSD Brasil, referindo-se às trocas e contribuições entre empresas da indústria de vacinas. “Mas, eu também diria que o futuro será entender o paciente do começo ao fim, com base em dados”. Em sua participação, o executivo também destacou: “Teremos que nos preocupar com a saúde mental dos nossos trabalhadores”.
Na indústria de saúde, o usual era a atenção para questões da política, da economia, a variação cambial. De repente, a saúde veio para o centro das atenções e pessoas comuns passaram a discutir fórmulas de vacina, por exemplo, citou Renato Carvalho, presidente da Novartis Brasil. “A verdade é que a saúde como segmento padece de uma assimetria de informação, mas tivemos um movimento de integração muito positivo nos últimos dois anos”, continuou ele. A palavra integração do segmento saúde foi bastante usada em todo o fórum, como indicador de esperança no futuro.
Como sustentar
Mas, quem paga a conta? É verdade que as despesas do governo com a saúde, por conta da pandemia, deram um salto, para mais de meio trilhão de reais em 2020. Mas caíram a 16% disso, no primeiro semestre deste ano. O número de leitos também aumentou e há demandas reprimidas devido à pressão imposta pela pandemia.
Tudo isso vai pressionar a demanda orçamentária do país, dizem os especialistas. Sem falar no envelhecimento. Essa pressão na saúde se dará pelo aumento no número de idosos. As pessoas estão tendo menos filhos, o que reduz a população em idade de trabalhar, e cai a arrecadação estatal. Projeções indicam que a população com mais de 60 anos será equivalente a um terço da atual em 2050, ou seja, mais de 66 milhões de brasileiros.
No debate sobre o financiamento da saúde emergiram muitos números. Por exemplo: Edson Araújo trouxe tema de recente estudo de sua equipe no Banco Mundial, o qual mostra que gastos com saúde custam, em média, 10% do orçamento familiar dos brasileiros. Dado o empobrecimento e o pouco acesso, a conclusão foi a seguinte: “Estimamos que 10 milhões de pessoas ficam abaixo da linha de pobreza anualmente, por não poderem ter nenhuma despesa com saúde”, disse Araújo. “Com clara ausência de cobertura do setor público”, prosseguiu ele.
Avaliação qualitativa
“Nós temos que nos preparar para planejar como o Estado vai atender a esse crescimento, que é uma tendência dada para a próxima década”, diz Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente, do Senado Federal.
O professor Paulo Furquim de Azevedo, do Centro de Regulação e Democracia do Insper, concordou com o ex-aluno Felipe Salto, de que é preciso avançar na avaliação da qualidade dos gastos públicos. “Antes da pandemia, nós já tínhamos muito clara essa dificuldade de conciliar uma demanda crescente por atendimento, com custos também crescentes dos serviços de saúde. Além da questão etária, acrescentaria a transição epidemiológica, como causa que faz com que as doenças de hoje sejam diferentes das doenças de 50 anos atrás”, disse Furquim.
O professor do Insper levantou ainda outras questões polêmicas. Para ele, na maioria dos setores a inovação é sinônimo de mais qualidade e menos custos. No caso da saúde, deve garantir mais qualidade, mas, também, aumento de custos, porque resultará em demanda por mais exames e mais medicação, por exemplo.
A alternativa de elevar a verba orçamentária para cobrir essas pressões por mais gastos, segundo os palestrantes, não seria, exatamente, uma boa ideia, uma vez que o país já está com a questão fiscal apertada. A não ser que fique claro que o benefício de mais dinheiro na saúde compensará a falta de recursos em outras áreas fundamentais, para controle do déficit público.
Discussion paper
Araújo citou estudo do Banco Mundial sobre eficiência no gasto com saúde no Brasil, em dados de 2017, com um déficit de R$ 36 bilhões. O que aponta para grande desperdício de recursos da saúde, sendo dois terços por culpa do setor hospitalar e um terço em razão de programas de atenção primária. Quanto menor o hospital, maior a ineficiência, segundo a pesquisa. “Quando se olha os dois, os municípios que têm atenção primária mais eficiente fazem todo o sistema funcionar”, disse ele.
Para Furquim, a telemedicina pode ser um instrumento de redução do desperdício de recursos na saúde. Também positiva pode ser a recente percepção da sociedade sobre as contribuições que a ciência pode agregar às políticas públicas, continua o professor. Mas ele lembrou ser improvável que a classe política dê alguma contribuição de curto prazo para melhoria do setor de saúde. Uma vez que, além do cenário político nebuloso atual, 2022 será ano eleitoral, com chances reduzidas de debate ou aprovação de medidas de longo alcance.
Bem além de discussões aprofundadas, o diferencial do Global Forum – Fronteiras da Saúde é o de propor alternativas factíveis para atingir equidade e qualidade no acesso à saúde. Para isso, constitui, anualmente, um Grupo de Trabalho que se dedica a um dos temas principais do evento: redigir um Discussion Paper com recomendações aos órgãos governamentais e às empresas privadas do setor. Este ano, o tema é a Incorporação de Novas Tecnologias em Saúde. A coordenação está a cargo do Centro de regulação e Democracia do Insper.