O mercado de saúde brasileiro é considerado um dos maiores do mundo, com cerca de 4,8 milhões de trabalhadores. No entanto, esse crescimento sólido e constante pode estar ameaçado, especialmente devido à alta carga tributária brasileira. Ciente dessa realidade, a Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde) realizou, nos dias 22 e 23 de março, no B Hotel, em Brasília, um debate voltado às reformas, regulação e competitividade do setor.
Com conversas e apresentações de especialistas, a programação completa contou com sete painéis para abordar os diferentes desafios do segmento. “É muito bom nos encontrarmos presencialmente aqui para discutir o sistema de saúde. As operadoras, no ano passado, tiveram prejuízos de R$ 15 bilhões e muitos hospitais fecharam suas portas. Temos reflexos ainda da pandemia e há um descompasso entre receita e despesa, em virtude da explosão dos custos que incidem pela cadeia de saúde, o que nos coloca diante de muitos desafios”, destacou Breno Monteiro, presidente da CNSaúde, na abertura do evento.
Antes do início dos painéis, Monteiro também ressaltou que, apesar de todas as mudanças na legislação, em 2022, há novos aspectos para a serem abordados e discutidos. Um deles, de grande relevância, diz respeito à reforma tributária, que recebeu destaque no evento e tem sido uma das principais pautas do Congresso Nacional no momento.
Nos últimos meses, a tributação sobre o consumo tem ganhado notoriedade, visto que, ao incidir sobre o fornecimento de produtos e serviços, algumas cadeias econômicas são muito oneradas, o que impacta nos investimentos e nas ampliações dos negócios no país. No âmbito da saúde, assim como em todos os demais segmentos, há um conjunto amplo de impostos. Atualmente, a carga tributária de hospitais, laboratórios e planos de saúde é composta, por exemplo, pela incidência direta com a soma dos resíduos tributários.
De modo geral, com a reforma, o intuito é conseguir uma melhoria no ambiente de negócios além de permitir o incentivo ao investimento, maior competitividade da economia brasileira, maior eficiência alocativa entre setores e entes federativos e transparência para os contribuintes. "A reforma, ao colocar uma tributação IVA, vai nesse sentido e é o padrão que se adota no mundo todo, em quase todos os países da OCDE”, comentou Gustavo Madi, sócio da LCA Consultores. O pesquisador apontou ainda que entre 118 países que adotaram um IVA, 81,6% tratam de maneira menos onerosa o setor de saúde, com isenção (70,8%), com alíquota zero (5,0%) ou com alíquota reduzida (5,8%).
A tributação IVA, conhecida como Imposto sobre Valor Agregado, é justamente um modelo para mudar essa realidade, migrando os impostos aplicados sobre bens e serviços para unificá-los. A quantidade de impostos é preocupante para o setor. Madi indicou, por exemplo, que cada hospital e laboratório tem uma estrutura de custos diferente e, portanto, tem uma incidência efetiva diferente. “Esse é um dos problemas do nosso sistema tributário. Cada agente do mercado, mesmo que seja muito parecido, paga uma quantidade diferente de tributos. Essa carga sobre as receitas que, atualmente, é de 9,9%, aumentaria com a reforma. A alíquota que vai ser colocada na reforma não está definida. Ela depende do processo de transição e é a necessária para que não haja aumento de carga”, ressaltou.
Entretanto, segundo o especialista, há algumas expectativas e estudos sobre qual seria essa alíquota aplicada. Madi indica que, utilizando estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a carga tributária para hospitais e laboratórios passaria de 9,9% para 26,9%. Para planos de saúde, com um raciocínio análogo, o valor sairia de 4,2% para 26,9%. O cenário foi desenhado a partir da hipótese de que haja uma alíquota única e o setor de saúde seja impactado pela mesma alíquota que vai valer para todos os demais.
"Diante desse aumento de carga, é possível que haja repasse para o consumidor final na forma de aumento de preços. Então, esse aumento de carga tributária de 17 pontos percentuais se traduziria em um aumento de 15,1% em termos de preço para o serviço de hospitais e laboratórios. No caso de planos de saúde, o aumento seria de 21,6%”, indicou.
Nesse contexto, Madi avalia que uma parte dos consumidores será sensível ao aumento de preços e acabará perdendo acesso ao serviço de saúde. Em números, haveria um impacto nas famílias de R$ 11 bilhões por ano. Em termos equivalentes, corresponderia a 1,15 milhão de planos individuais que deixariam de ser contratados no setor privado. “O paciente não atendido pelo setor privado acabaria sendo atendido pelo SUS e, portanto, congestionaria ainda mais o sistema público que já é bastante congestionado”, complementou.
Bernard Appy, secretário extraordinário da Reforma Tributária, do Ministério da Fazenda, informou que a reforma proposta busca potencializar o crescimento do país, buscando beneficiar todos os setores da economia. Por meio de um estudo que simula qual o efeito da modificação tributária, foi contabilizado um crescimento de 12% do PIB brasileiro, supondo a alíquota uniforme para todo mundo. Nesse cenário, o segmento de saúde teria um ganho de 6%.
“O setor tem legitimidade para querer tratamento exclusivo, isso faz parte do debate político. A decisão é do Congresso, mas é importante a gente entender que não dá para entrar no debate sem perder um centavo. Essa é uma linha perigosa. Se toda empresa do Brasil falar que não pode perder um centavo, não tem reforma e a gente fica como está hoje. Dentro do setor, há diferenças. Tem empresas que pagam mais, tem empresas que pagam menos em função da sua situação. Não dá para cada uma dessas empresas falar que não vai sair da posição atual. Quando o PIB cresce, a renda das famílias cresce e o setor mais beneficiado é o setor de serviços prestados para as famílias”, contextualizou.
Para Appy, a análise acerca do efeito dos preços no setor é legítima, mas, na avaliação do especialista, é necessário também olhar para os outros efeitos da reforma tributária. O profissional indicou que há um grande impacto sobre o crescimento, além de haver a correção de distorções que existem atualmente no sistema.
Avanços com a reforma trabalhista
Outro assunto abordado foram as mudanças nas relações de trabalho introduzidas pela reforma trabalhista. Passados mais de cinco anos, ela continua sendo responsável pela manutenção e geração de novos empregos formais no Brasil. Todavia, "desde o início, ela [reforma trabalhista] foi muito atacada pelas centrais sindicais", relembrou Hélio Zylberstein, professor da faculdade de Economia da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador da Fipe.
As principais reclamações, no geral, indicavam que a reforma inibiu a negociação coletiva; retirou e/ou derrogou direitos; precarizou o mercado de trabalho; e reduziu a taxa de sindicalização. As centrais levaram duas reclamações contra o governo brasileiro à Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2019 e 2021. No entanto, o Brasil foi absolvido em ambas as datas. Ainda de acordo com o professor, "a reforma trouxe um ambiente positivo para o país. Houve uma redução de 40% de reclamações. Além disso, houve uma queda da litigiosidade, o que contribuiu para a criação de empregos. De modo geral, a diminuição dos processos trabalhistas induziu as empresas a contratar mais empregados, reduzindo a taxa de desocupação em 1,7 pontos percentuais e aumentando em 2% a produção agregada".
Piso nacional da enfermagem ameaça empregos
Contratada para avaliar os efeitos do piso salarial da enfermagem para a administração pública e para empresas no setor de saúde, a LCA apresentou uma análise dos valores propostos para profissionais da enfermagem. A nova legislação, suspensa pelo Supremo Tribunal Federal, estabelece um piso salarial de R$ 4.750 para enfermeiros; de R$ 3.325 para técnicos de enfermagem e de R$ 2.375 para auxiliares e parteiras.
Entre os problemas decorrentes da implantação do piso nacional, a LCA destacou a disparidade entre os salários praticados e os valores que teriam de ser obedecidos. "Cerca de 70% desses vínculos estariam impactados com a política de piso, porque teriam de sofrer alterações", explicou Claudia Viegas, diretora sênior de Regulação e Políticas Públicas da LCA Consultores. De acordo com a profissional, 887,5 mil vínculos estão abaixo do piso salarial proposto, sendo 55% dos enfermeiros, 82% dos técnicos de enfermagem e 47% dos auxiliares de enfermagem.
Em sua análise, Viegas pontuou que estados com menor PIB per capita, como Pernambuco, Maranhão e Paraíba, são relativamente mais afetados pelo incremento salarial. “Cerca de 887,5 mil trabalhadores vão sofrer impacto. Em termos de recursos, o impacto somaria R$ 13,2 bilhões anuais. “A região Nordeste vai sofrer o maior efeito sobre a massa salarial, com [aumento de] R$ 4,2 bilhões", ressaltou. Além disso, o impacto no setor público, de R$ 3,8 bilhões, pressiona o orçamento e afeta as administrações públicas municipais, que concentram a maior parcela de profissionais de enfermagem.
No setor privado, o aumento de custo de R$ 5,3 bilhões pode levar as empresas a compensarem o gasto adicional por meio de ajustes na quantidade de empregos, nos preços e nas margens, com consequências para a qualidade dos serviços prestados e para o acesso ao serviço pela população.
“A gente entende que a política, por mais bem intencionada que seja, traz riscos fundamentalmente para a categoria que tende a contemplar. Qualquer cenário aponta para isso: perda de emprego, perda de qualidade no serviço e troca de postos mais qualificados para postos menos qualificados”, resumiu.
Os números sobre o impacto do piso da enfermagem nos orçamentos de Estados e Municípios, apresentados por Mauro Guimarães Junqueira, secretário executivo do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), apontam para um choque ainda maior. Pelos cálculos da entidade, considerando-se todos os contratos existentes com terceiros, além dos salários diretos, o aumento de custo anual chega a R$ 27,5 bilhões, sendo R$ 15,5 bilhões para a esfera municipal e R$ 12,0 bilhões para a estadual. “No SUS, os municípios ficam com 18% de tudo o que se arrecada no país e respondem por 33% de ações e serviços públicos em saúde, enquanto o governo federal fica com mais de 60% da arrecadação. É preciso discutir o pacto federativo e é preciso ter coragem para que o recurso fique onde a população mora".
O economista José Roberto Afonso, conhecido como o pai da responsabilidade fiscal, criticou a utilização de fundos públicos para o pagamento de pisos conforme preconizado pela Emenda Constitucional 127. Ele afirmou que os fundos têm caráter meramente contábil e que os recursos desses fundos são reservados para propósitos específicos que não o pagamento de despesas correntes como os salários. Por fim, indicou que não há recursos no orçamento para fazer frente ao uso desses recursos, o que implicaria, necessariamente, na necessidade de redução de outras despesas do orçamento ou do aumento de impostos.
Além disso, o presidente Breno Monteiro afirmou que além da PEC e sua possível regulamentação via MP, não resolverem o problema do setor público e filantrópico a propostas de solução para o setor privado, como o PL 2595 de 2022 do Senador Izalci Lucas, presente ao evento, ainda não prosperaram. “O setor de prestadores privados é formado majoritariamente por pequena e médias empresas e muitas atendem à saúde suplementar e ao SUS. Sem uma fonte para esses entes muitas empresas fecharão suas portas”.
Matéria escrita pela jornalista Gabriella Collodetti