Transplante de medula óssea possibilita recomeços

Procedimento evoluiu nos últimos 35 anos, trazendo esperança para pacientes com doenças até então consideradas incuráveis, como leucemia e linfoma

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postado em 25/12/2022 00:00
 (crédito: Getty Images/iStockphoto)
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Há pouco mais de três décadas, descobrir alguns tipos de doenças hematológicas ou imunológicas era sinônimo de um tratamento complicado com transplante de medula óssea, que poderia exigir a ingestão, pelo paciente, de mais de cem comprimidos de medicação por dia, e, que, em muitos casos, tinha poucas chances de sucesso. Tudo mudou com o desenvolvimento da técnica, que permitiu realizar transplantes de forma cada vez mais segura, com soluções que trouxeram maior chance de cura para doenças como leucemia e linfoma e que continuam evoluindo a cada dia.

No Brasil, o primeiro transplante do tipo foi realizado em 1979, no Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Em 1987, o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, foi a primeira organização privada do país a fazer um transplante de medula óssea e, nos últimos 35 anos, além de realizar quase 2.000 procedimentos, trouxe para o Brasil avanços como a tecnologia do congelamento da medula, o transplante autólogo – com células-tronco do próprio paciente – e o transplante de células de cordão umbilical de doadores não aparentados.

“A medicina vem avançando a uma velocidade enorme. Quando começamos, era preciso ter um irmão HLA [sigla para antígeno leucocitário humano, que indica a compatibilidade entre células, tecidos e órgãos] idêntico. Depois, passamos para os registros de doadores. Hoje, o Brasil tem um dos maiores bancos do mundo”, afirma Nelson Hamerschlak, coordenador do Programa de Hematologia, Transplantes de Medula Óssea e Terapia Celular do Einstein.

O transplante consiste na substituição de uma medula óssea doente ou deficitária por células normais de medula óssea, com o objetivo de promover a reconstituição saudável das células-tronco. De acordo com o Ministério da Saúde, o procedimento pode beneficiar o tratamento de mais de 80 enfermidades, como doenças hematológicas, imunológicas, onco-hematológicas, genéticas hereditárias e autoimunes.

Einstein foi a primeira organização privada no país a fazer transplante de medula óssea
Einstein foi a primeira organização privada no país a fazer transplante de medula óssea (foto: Ciete Silvério/Divulgação)

A quimioterapia e a radioterapia, que também pode ser necessária, atuam no sentido de eliminar doenças dentro do tutano do osso – forma como a medula óssea é chamada. Esse tratamento inicial também abre espaço dentro dos ossos para receber, através do próprio cateter, células capazes de se multiplicarem para formar uma nova medula óssea.

Nos últimos anos, o transplante de medula evoluiu. Novos medicamentos e modalidades terapêuticas foram inseridos no escopo do tratamento. “O principal remédio que se usava na época era um medicamento oral que o indivíduo tinha que tomar de 30 a 40 comprimidos a cada seis horas. Depois, se transformou em uma medicação endovenosa aplicada uma vez por dia. Nesse cenário, os antibióticos e antifúngicos também melhoraram muito”, conta Hamerschlak.

Avanços no tratamento

No Brasil, o Einstein foi pioneiro em realizar o transplante autólogo, onde as células-tronco do próprio paciente são coletadas, congeladas e utilizadas posteriormente. A inovação propiciou o tratamento de pacientes com mieloma múltiplo, linfomas e alguns tipos de cânceres pediátricos no país.

Segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), a probabilidade de haver doador idêntico na mesma família é, em média, de 25% a 30%. Quando não há parentescos, a probabilidade diminui ainda mais: a chance de encontrar alguém 100% compatível fora
da família pode chegar a um em 100.000 mil. Nesses casos, se faz necessária a busca por doadores no Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea (Redome), responsável por reunir informações de voluntários.

Com mais de 6 milhões de doadores cadastrados, o Redome é o terceiro maior registro do mundo. Para se tornar um doador de medula óssea, é necessário ter entre 18 e 35 anos de idade, estar em bom estado geral de saúde e não ter doença infecciosa ou incapacitante. Também não pode apresentar doenças neoplásicas, hematológicas ou do sistema imunológico. Segundo o Ministério da Saúde, em 2019, existiam 107 hemocentros e cem centros para transplantes de medula óssea distribuídos por todo o Brasil.

Outra evolução importante foi o desenvolvimento da tecnologia do congelamento da medula, a fim de possibilitar a utilização posterior para novas fases do tratamento. O Einstein foi responsável não só por implementar a técnica no Brasil, mas também por difundi-la. “Aprendemos no exterior e, depois, trouxemos equipamentos, iniciamos o procedimento e treinamos outros centros no país”, conta Hamerschlak. Em parceria com a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, o Einstein também foi pioneiro, no país, em transplantes em pacientes com doenças autoimunes, como esclerose múltipla, esclerose sistêmica e casos selecionados de Lúpus Eritematoso Sistêmico.

Em 1997, o hospital fez o primeiro transplante de células de cordão umbilical não aparentado – de doadores não familiares – no Brasil, com o apoio da entidade norte-americana New York Blood Center (NYBC). “Posteriormente surgiu a possibilidade de utilização de doadores familiares chamados haploidênticos, isto é, que carregam 50% de carga genética compatível com o paciente. Mais uma vez o Einstein foi pioneiro nesta modalidade” relembra o médico. “Estas duas novas formas de transplantar trouxeram a possibilidade de romper a barreira da compatibilidade”, completa.

O sangue do cordão umbilical é considerado uma fonte promissora de células-tronco, e o Einstein implementou no início dos anos 2000 um banco de cordão umbilical, contribuindo para a execução de transplantes não aparentados. O Programa de Hematologia e Transplantes de Medula Óssea do Einstein foi, em 2012, o primeiro fora da América Latina a receber o certificado da Foundation for the Accreditation of Cellular Therapy (FACT), dos Estados Unidos, que atesta padrões de qualidade e excelência no procedimento de terapias celulares.

Os avanços obtidos nos últimos 35 anos beneficiaram pacientes do serviço público e do privado. “O transplante nasceu no serviço público e hoje nós, por exemplo, no Einstein, também atendemos a área pública por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS), onde recebemos pacientes regulados através do Sistema Nacional de Transplantes, do Ministério da Saúde”, conta Hamerschlak.
Paciente como protagonista.

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Para o sucesso do tratamento, no entanto, garantir um tratamento humanizado por toda uma equipe médica e multidisciplinar, que torne o paciente protagonista durante todo o processo, é tão importante quanto a evolução da técnica do transplante. “Os pacientes que apresentam doenças onco-hematológicas, hematológicas e genéticas graves, ou que possuem imunodeficiências e doenças autoimunes complexas são essencialmente fragilizados. Por isso, é extremamente importante dar o suporte necessário para que eles possam superar a agressividade de um procedimento desse tipo, ganhando qualidade de vida”, aponta Hamerschlak.

O advogado G.R*, conhece na prática a importância desse cuidado. Aos 75 anos, ele sofreu um pequeno desmaio em sua fazenda. Quando se consultou, foi diagnosticado com uma mielodisplasia, distúrbio que acomete a produção e o amadurecimento das células da medula. Graças ao transplante e ao apoio recebido, alcançou a cura.

“Comecei com uma quimioterapia que não surtiu os resultados esperados. Então, apareceu a oportunidade de fazer um transplante de medula óssea. Depois dos exames e de termos encontrado um doador, fizemos o procedimento. Foi muito trabalhoso e cauteloso, por conta da minha idade”, relembra.

Segundo ele, receber o apoio de familiares e amigos, assim como dos profissionais de saúde, permitiu que sua esperança se mantivesse sempre firme, apesar dos momentos difíceis – especialmente no período de isolamento, com grande consumo de medicação e de fisioterapia.

O paciente J.L* também faz parte dos pacientes que venceram o câncer. Diagnosticado com Síndrome de Sézary, um linfoma cutâneo de células T, ele recorda que o primeiro sintoma da enfermidade foram as intensas coceiras pelo corpo.

“Tiraram a medula do meu filho e, no mesmo dia, fizeram uma transfusão. A partir disso, eu tive que esperar um tempo, até acontecer o que os médicos chamam de pega da medula”, diz. A “pega” marca o momento em que a medula já consegue produzir sozinha as células do sangue em quantidades suficientes", comenta. “Foram 15 dias de suspense e em que eu senti muita dor, o que é uma coisa normal após o transplante de medula, mas depois, finalmente, recebi a notícia de que o procedimento havia funcionado", destaca.

*Os nomes não foram divulgados para manter a privacidade dos pacientes.

Matéria escrita pela jornalista Gabriella Collodetti

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