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Opinião

Tráfico de pessoas: a escravidão moderna que persiste

O tráfico de pessoas está ao nosso lado, nas fronteiras esquecidas da Amazônia, nos arredores escuros das grandes cidades, até mesmo em casas aparentemente comuns

Márcia OliveiraPesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (Ufam), doutora em sociedade e cultura na Amazônia (Ufam), com pós-doutorado em sociedade e fronteiras (UFRR)

Em pleno século 21, ainda há seres humanos vendidos como mercadorias. Não em navios negreiros ou mercados públicos, mas em esquemas estruturais, invisíveis aos olhos da maioria, porém tão reais quanto devastadores. O tráfico de pessoas é a terceira atividade ilegal mais lucrativa do mundo, movimentando cerca de US$ 32 bilhões anualmente, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Dinheiro manchado de sangue, sofrimento e silêncios forçados.

O mais chocante? Oitenta e cinco por cento dessa fortuna perversa vem da exploração sexual. Mulheres e meninas são as principais vítimas, representando 65% dos casos globais. E não se engane — o tráfico não acontece apenas em filmes ou em países distantes. Ele está aqui, ao nosso lado, nas fronteiras esquecidas da Amazônia, nos arredores escuros das grandes cidades, até mesmo em casas aparentemente comuns. A diferença é que preferimos não ver.

Em regiões de fronteira, como Pacaraima ou Tabatinga, a Amazônia se torna um terreno fértil para traficantes, que se aproveitam da vulnerabilidade social e da ausência do Estado. Pessoas que fogem da miséria, da violência ou de eventos relacionados com a crise climática e acabam caindo em armadilhas perversas,  iludidas por promessas de trabalho e melhores condições de vida. No fim da linha, o que encontramos é um ciclo de exploração sem fim que envolve comercialização dos serviços sexuais (especialmente de mulheres e pessoas LGBTQIAPN ), trabalho análogo ao escravo e até mesmo a comercialização de órgãos (que envolve mais as crianças).

Há uma estreita ligação entre migrações e tráfico de pessoas. Muitas vezes, o aliciamento inicia com a viagem. Migrantes contraem dívidas com a viagem do seu país para o Brasil e não se dão conta que estão entrando na armadilha do tráfico. Quando percebem, já estão nas mãos dos traficantes, que iniciam processos de extorsão e ameaças. Ao chegar ao Brasil, homens são vítimas de trabalho análogo ao escravo em fazendas, madeireiras e garimpos da Amazônia. Mulheres são obrigadas à prostituição, como forma de pagamento das dívidas contraídas na viagem. Há casos de  crianças migrantes negociadas para pagamento de dívidas ou entregues para adoção de pessoas envolvidas com o tráfico humano. 

O Brasil, país marcado por desigualdades estruturais, apresenta  números que escancaram o problema: crianças e adolescentes negros representam a maior parte das vítimas de violência sexual, com uma média diária de 70 denúncias. Três em cada quatro vítimas de violência sexual no país têm menos de 19 anos. São dados alarmantes, mas ainda subnotificados. A vergonha, o medo e o estigma silenciam as vítimas todos os dias.

E o que estamos fazendo? Indignados por cinco minutos em uma reportagem especial, compartilhando um post nas redes sociais e, logo, esquecendo. Mas o tráfico de pessoas não para. O sistema que alimenta essa máquina cruel segue funcionando, com a conivência da nossa apatia.

O tráfico de pessoas é alimentado por três pilares: vulnerabilidade, demanda e impunidade. Em meio a miséria, desigualdades, guerras e migrações forçadas, quase sempre haverá pessoas dispostas a arriscar tudo por uma vida melhor. Enquanto há clientes que desejam pagar por sexo, trabalho escravo ou órgãos humanos, as redes criminosas continuarão atuando indiscriminadamente. E, enquanto os traficantes não forem punidos de forma exemplar, o ciclo jamais será interrompido.

No Brasil, desde 2016, o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas foi interrompido, o que resultou em enormes prejuízos para toda a sociedade. Somente em 2023, o debate foi retomado, e, depois de muito esforço, foi lançado o IV Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que, novamente, estabelece os objetivos, os eixos estratégicos, as ações prioritárias e as atividades que nortearão o enfrentamento ao tráfico de pessoas para o período de 2024 a 2028 com a autoridade institucional. Durante os anos de omissão por parte do governo federal, se fortaleceram iniciativas como a Rede Um Grito Pela Vida e a Rede Eclesial Pan-Amazônia, que  atuam em diversas frentes, de modo especial com a prevenção ao tráfico. 

Diante da complexidade do tema e da ampla atuação das redes de  tráfico e do aumento das rotas, especialmente nas fronteiras da Amazônia, são necessárias políticas públicas robustas, fronteiras monitoradas, acolhimento digno para migrantes e refugiados (que são as principais vítimas), educação de base para prevenir o aliciamento e, principalmente, justiça social. 

 


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