Opinião

Mirem-se nos exemplos do filósofo do Mondubim

Durante meio século e mais oito anos de vida, a coluna de Ari Cunha se transformou em referência da cidade. Impossível não interligar as histórias de vida de Brasília com a do jornalista

Crédito: Arquivo CB/D.A Press. O diretor do Correio Braziliense, Ari Cunha. -  (crédito: Arquivo CB/D.A Press)
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Crédito: Arquivo CB/D.A Press. O diretor do Correio Braziliense, Ari Cunha. - (crédito: Arquivo CB/D.A Press)

José Natal, Jornalista

 

José de Arimathea Gomes Cunha, o nosso saudoso Ari Cunha, que nos deixou aos 91 anos de idade, em 2018, com certeza está entre as mais importantes personalidades que integram o simbólico quadro de pioneiros que fizeram parte da construção de Brasília. Vindo do Nordeste, chegou por aqui no comecinho de tudo. Fincou raiz no Planalto Central, fundou um jornal que se transformou na voz da cidade, dela cuidou como se fosse sua, a respeitou como se fosse uma dama e a protegeu como se fosse filha.

Sempre nas datas que lembram o aniversário de Brasília, uma avalanche de pseudopioneiros se arvoram em citar momentos que sequer viveram, e alguns deles nem da cidade gostam. Dizer-se pioneiro não basta, tem que ter passado. Tem que ter referências, fatos da história pra contar. Recorrer ao Google não vale, o DNA da história é o documento.

Com o devido respeito a tantos que nessa exigência se encaixam, é difícil não dar ao jornalista a honraria de estar entre os primeiros na fila. A primeira edição do Correio Braziliense nasceu em 21 de abril de 1960. E já na página 11 do segundo caderno, da edição de número 22, do dia 15 de maio do mesmo ano, estava lá a coluna Visto, Lido e Ouvido, assinada por Ari Cunha. Durante meio século e mais oito anos de vida, a coluna se transformou em referência da cidade, como se fosse um canal de voz da comunidade, com informações criteriosas, opinativas e, acima de tudo, com um grau de credibilidade nunca questionado. 

Atento a tudo que girava a seu redor, Ari, com um texto ora ácido e, muitas vezes, bem-humorado, nunca se furtou a revelar, detalhar e também denunciar tudo aquilo que de alguma forma era de fundamental interesse da cidade e do país. Ético e corajoso, e com Brasília ainda jovem, soube entendê-la. Quando ela adolescente, deu a ela mil conselhos. Quando ela se tornou adulta, a dividiu com as ações e encarou consequências. Nunca temeu ameaças e jamais omitiu a verdade, como tinha que ser. Impossível não interligar as histórias de vida de Brasília com a do jornalista Ari Cunha.

Contou fatos e coisas que, ao longo do tempo, aconteceram em ruas e becos. Nos gabinetes dos tribunais, nos ambientes políticos e, também, com ênfase, decifrou mistérios e segredos de senhores do poder. Naqueles tempos distantes, sem a internet e as eficiências do gênero, a informação chegava por canais e naipes de toda ordem. Poderia surgir numa conversa com vizinhos, reunião com amigos, solenidades e eventos, cartas e telefonemas, e de fontes confiáveis. Ou a investigar. 

Os mais antigos na cidade também devem se lembrar da enxurrada de críticas e zombarias dirigidas ao governo de JK pelo atrevimento de tirar a capital do Brasil do Rio de Janeiro e trazê-la para o Centro-Oeste. Visionário, Ari se armou de argumentos sólidos e, com frequência, disparava poucas e boas contra aqueles encastelados que faziam cara feia e ataques covardes, condenando a mudança da capital. Nunca a verve arretada do cearense do Mondubim se fez tão presente, e a defesa de Brasília ganhou força nas páginas do jornal. Bom que se diga, com muito mais determinação do que aquelas feitas por políticos de todas as tribos. Os tempos eram outros, não havia por aqui a velocidade do WhatsApp, a comunicação digital e outros sinais que modernizam o mundo de hoje.

Sem rodeios e de peito aberto, Ari Cunha não economizava verbos para mostrar sua indignação com as ações e mensagens negativas contra a nova capital. Na coluna de 26 de abril de 1962, sem papas na língua, disparou: "Porta-vozes bem remunerados continuam, na imprensa carioca, procurando desprestigiar Brasília e tentam atingir agora a equipe que a construiu. A defesa pela calúnia surge no cenário, mas o povo  saberá discernir". Em outro momento, mais uma vez, a coluna esboçou sua revolta contra os adversários que atuavam nas sombras e sentenciou: "O que está sendo feito aqui é de concreto armado e nem as britadeiras, nem as picaretas dos inimigos poderão destruir. A obra tem alcance superior". 

A cidade cresceu, superou obstáculos, consolidou-se como berço moderno e suficientemente capaz de corresponder a tudo aquilo que dela se esperava. Ainda hoje, há resquícios de descontentamento, em grande parte gerados por mentes de pequeno alcance, pessoas descompromissadas com o futuro do país. 

Nada passava despercebido aos olhos do cearense que se apaixonou pela cidade. E, com um estilo próprio de manifestar esse sentimento, ouvia todos os seguimentos sociais, e a todos tratava com simplicidade e insistente curiosidade sobre qualquer que fosse a queixa, informação ou qualquer coisa de interesse da comunidade. Com o passar do tempo, a coluna virou referência para os leitores, um abrigo na mídia que muitos buscavam como farol de orientação. Como em todas as grandes cidades, os problemas acontecem e, cada vez mais, a impotência da comunidade em levá-los às autoridades, ditas responsáveis, fica mais evidente.

Agora, com Brasília já com 65 anos de idade, a coluna criada por ele em 1960 continua ativa e atenta, sob a responsabilidade da filha Circe Cunha, que herdou do pai o talento, a determinação e igual senso crítico a fatos e coisas que despertem o interesse comum. O comunicador que foi visto, lido e ouvido deixa seu nome na história da cidade. Pra sempre.

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postado em 24/03/2025 06:00