Opinião

Cuidado paliativo não é o começo do fim

Com o aumento da longevidade, também crescem as demandas por um cuidado que ultrapasse a busca pela cura, voltando-se para o conforto, a autonomia e o alívio do sofrimento

PRI-2303-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire)
x
PRI-2303-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire)

Arthur Fernandes — Médico de família e comunidade, paliativista, diretor do Departamento de Comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade

Nossa cultura é quente. Para nós, brasileiras e brasileiros, proximidade, afeto, abraço e toque são grandes símbolos de cuidado. Alimentar-se, também. Assim como levar ao hospital um ente querido. Já "um paliativo", para nós, é lembrado como "um arremedo" ou "uma gambiarra": o que se faz para "dar um jeitinho" quando não há mais nada a fazer. Ninguém gostaria desse tipo de "paliativo" para si ou para seu ente querido. Por isso, preciso te dizer: essa história foi muito mal contada. Sobre cuidado paliativo, sobre vida e sobre doenças graves que acontecem pelo caminho.

Cuidado paliativo é uma abordagem ampla, focada em pessoas que convivem com uma doença grave e que prejudica sua qualidade de vida, além dos seus entes queridos, que sofrem junto, ao longo do processo. O objetivo é melhorar a qualidade de vida, pois uma doença avançada ou incurável não reduz a atenção que o paciente merece.

 A medicina tem limites para curar, mas o cuidado não tem limites para aliviar o sofrimento. Nossa medicina pode ter limites para curar doenças, mas nosso cuidado não tem limites para dar assistência às pessoas que sofrem por causa delas. Tanto é assim que pacientes que recebem bons cuidados paliativos não só vivem melhor, como podem viver por mais tempo.

O cuidado paliativo envolve a preparação sobre o impacto da doença e seu avanço, não só no sentido da dor e outros sintomas difíceis, mas também sobre o que está por vir, como sofrimentos de ordem emocional, social ou espiritual. A dor da alma, o medo do futuro e as incertezas do caminho também precisam de acolhimento. Como escreveu o neuropsiquiatra Viktor Frankl, "a dor precisa ter um sentido". No cuidado paliativo, encontramos esse sentido no respeito à história de cada pessoa, no reconhecimento de seus valores e na construção de um caminho digno até o fim.

Os cuidados paliativos são uma das áreas de atuação da medicina de família e comunidade. A atenção primária à saúde (APS), como porta de entrada do sistema, acompanha as pessoas ao longo da vida, entendendo-as não como um conjunto de órgãos, mas com um ser integral, ajudando-as a enfrentar doenças graves com um cuidado contínuo, próximo e acessível.

Quando se tratam de cuidados paliativos, todos esses aspectos precisam ser considerados pela equipe, apoiando paciente e família ao longo da convivência com a doença, proporcionando conforto e os ajudando a planejar e se preparar para o futuro. Garantindo, inclusive, que suas vontades, suas crenças e seus valores sejam respeitados nesse futuro adiante.

O envelhecimento acelerado da população brasileira torna urgentes as políticas públicas sobre cuidados paliativos, mas não só para essa população: para todas as pessoas, em qualquer momento da vida. O Brasil já conta com mais de 33 milhões de idosos, e esse número cresce a cada ano. Com o aumento da longevidade, também crescem as demandas por um cuidado que ultrapasse a busca pela cura, voltando-se para o conforto, a autonomia e o alívio do sofrimento.

Hoje, de acordo com o Ministério da Saúde, 625 mil brasileiros têm necessidades de cuidados paliativos. São pessoas de todas as idades, com doenças como câncer avançado, problemas cardíacos ou respiratórios, demências, entre várias outras condições, em todas as regiões do país.

Viver não tem preço, mas tem custo. Morrer, também. Nesse sentido, em 2024, foi publicada a Política Nacional de Cuidados Paliativos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), com financiamento específico para a rede de atenção à saúde. A expectativa é implantar mais de mil novas equipes multiprofissionais em todo o Brasil, com foco na APS como coordenadora desse cuidado na rede de saúde. 

Paliar não é apenas tratar sintomas, é construir um cuidado integral e coordenado entre diferentes profissionais. Essa conquista deve nos impulsionar a garantir acesso a cuidados paliativos de qualidade para todos, assegurando não só uma vida digna, mas também um final que a honre.

Com o perdão do trocadilho: no final das contas, cuidar é sobre estar presente. É sobre acolher o outro como um todo. É sobre tornar a despedida menos solitária e mais humana. Com técnica e consciência, resgatar Thiago de Mello, que escreveu: "Não importa que doa: é tempo/de avançar de mão dada/com quem vai no mesmo rumo,/ mesmo que longe ainda esteja/ de aprender a conjugar/ o verbo amar."

Opinião
postado em 23/03/2025 06:00