
Juliana Cézar Nunes — jornalista e doutora em poder e processos comunicacionais (UnB). Faz parte da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do DF (Cojira-DF) e integra a irmandade Pretas Candangas
As mulheres negras brasileiras estão em movimento com o propósito de realizar, em novembro, a segunda Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver. Dez anos depois da primeira marcha, o desafio é construir um processo que gere mais conexões, reconhecimentos, agendas e estratégias para reivindicação de direitos.
Em meio a essa construção e no marco do Dia Mundial da Água, pesquisadoras e ativistas negras recebem de presente um livro que traz as vivências de mulheres negras latino-americanas sob o olhar da antropóloga Paula Balduíno de Melo, professora do Instituto Federal de Brasília, diretora de políticas para quilombolas e ciganos do Ministério da Igualdade Racial e integrante da irmandade Pretas Candangas.
Matronas Afro-pacíficas: tramas da resistência da fronteira Colômbia-Equador será lançado no próximo dia 27, às 17h, pela Editora da Universidade de Brasília (UnB), na livraria da UnB, Campus Darcy Ribeiro. O lançamento promete trazer as cores e os sabores afro-pacíficos, algo que o livro oferece em abundância. São cerca de 600 páginas de um riquíssimo e envolvente relato de vivência etnográfica, baseado na tese de doutorado da pesquisadora, que é fruto de uma caminhada acadêmica com o anseio de conhecer a diáspora africana em outros pontos da América.
O resultado é um texto que possibilita às mulheres negras brasileiras, acostumadas a ser tão atlânticas, perceberem que é possível transbordar no "território-água" (termo conceituado pela autora) e fazer conexões entre outros rios, mangues e mares habitados, disputados e intensamente vividos.
Ao contar histórias de marisqueiras, parteiras, curandeiras, rezadeiras e cantadoras, Paula Balduino propõe reflexões preciosas sobre as identidades afrodescendentes latino-americanas. Ao mesmo tempo, revela como as "matronas afro-pacíficas" constroem redes de irmandade política e afetiva, conectando o ambiente doméstico ao domínio público e tornando-se lideranças em organizações afro/negras, de mulheres e de mulheres negras. Tudo isso em uma região marcada pela violência contra as mulheres e as disputas entre facções criminosas ligadas às guerrilhas e ao narcotráfico, que atravessaram a autora durante sua experiência de campo.
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As matronas afro-pacíficas refletem a tradição de resistência feminina negra. Elas constroem uma territorialidade fluida, o "território-água", que tanto nos remete à força das yabás, quanto desafia as dicotomias entre rural e urbano, privado e público. Em meio a contextos de violência sociopolítica, essas mulheres mantêm vivos os circuitos de reciprocidade e solidariedade.
As reflexões de Paula são permeadas por ricos diálogos com autoras negras como Lélia González, que, desde sempre, nos convida a pensar sobre a amefricanidade, e Jurema Werneck, que propõe um referencial afrocentrado de luta das mulheres a partir da ialodês do samba. Ainda é chamada para a "roda" de conceitos a autora norte-americana bell hooks, que tão lindamente escreveu sobre o amor no contexto da luta política e coletiva das mulheres.
As concepções de referências do pensamento de mulheres negras se misturam com as vozes poderosas de mulheres como a equatoriana Inês Morales, nascida às margens do Rio Bogotá e fundadora do Movimento de Mulheres Negras do Norte de Esmeraldas, e Eva Lucia, liderança na região do Rio Mira e uma das principais articuladoras do Processo de Comunidades Negras no Pacífico Sul colombiano.
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As chaves de leitura propostas por Paula Balduíno de Melo nos permitem dizer que, sem dúvida, seu livro já "nasce" como uma referência. O texto nos inspira a ampliar o olhar e a pensar afrolatinas sob outras categorias e perspectivas de futuro. Nessa linha, vale destacar o Festival Latinidades, que nascido em Brasília, há 18 anos, nos meses de julho, sob a direção da produtora cultural e jornalista Jaqueline Fernandes, contribui para trocas entre as afrolatinas de vários países, inclusive com a colaboração da autora do livro.
Rios e mares das mulheres seguem o caminho do encontro, aumentando ainda mais a força das águas. As histórias das afrolatinas evidenciam resiliência e capacidade de articulação em diferentes contextos. As narrativas destacam a importância de reconhecer e valorizar as múltiplas formas de protagonismo das mulheres negras na história e na contemporaneidade, seja na construção de identidades negras, no combate ao racismo e, especialmente, na busca pelo bem-viver ou simplesmente "vivir saboroso".
Como muito bem nos convida a antropóloga colombiana Mara Viveros-Vigoya no prefácio do livro, que tenhamos "ouvidos atentos e sensíveis à força e ao poder das vozes das matronas afro-pacíficas".
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