Opinião

Matronas afro-pacíficas no território-água de resistências latinas

Em livro, Paula Balduino propõe reflexões preciosas sobre as identidades afrodescendentes latino-americanas e revela como as "matronas afro-pacíficas" constroem redes de irmandade política e afetiva

PRI-2203-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire)
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PRI-2203-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire)

Juliana Cézar Nunesjornalista e doutora em poder e processos comunicacionais (UnB). Faz parte da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do DF (Cojira-DF) e integra a irmandade Pretas Candangas

As mulheres negras brasileiras estão em movimento com o propósito de realizar, em novembro, a segunda Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver. Dez anos depois da primeira marcha, o desafio é construir um processo que gere mais conexões, reconhecimentos, agendas e estratégias para reivindicação de direitos.

Em meio a essa construção e no marco do Dia Mundial da Água, pesquisadoras e ativistas negras recebem de presente um livro que traz as vivências de mulheres negras latino-americanas sob o olhar da antropóloga Paula Balduíno de Melo, professora do Instituto Federal de Brasília, diretora de políticas para quilombolas e ciganos do Ministério da Igualdade Racial e integrante da irmandade Pretas Candangas.  

Matronas Afro-pacíficas: tramas da resistência da fronteira Colômbia-Equador será lançado no próximo dia 27, às 17h, pela Editora da Universidade de Brasília (UnB), na livraria da UnB, Campus Darcy Ribeiro. O lançamento promete trazer as cores e os sabores afro-pacíficos, algo que o livro oferece em abundância. São cerca de 600 páginas de um riquíssimo e envolvente relato de vivência etnográfica, baseado na tese de doutorado da pesquisadora, que é fruto de uma caminhada acadêmica com o anseio de conhecer a diáspora africana em outros pontos da América.

O resultado é um texto que possibilita às mulheres negras brasileiras, acostumadas a ser tão atlânticas, perceberem que é possível transbordar no "território-água" (termo conceituado pela autora) e fazer conexões entre outros rios, mangues e mares habitados, disputados e intensamente vividos.

Ao contar histórias de marisqueiras, parteiras, curandeiras, rezadeiras e cantadoras, Paula Balduino propõe reflexões preciosas sobre as identidades afrodescendentes latino-americanas. Ao mesmo tempo, revela como as "matronas afro-pacíficas" constroem redes de irmandade política e afetiva, conectando o ambiente doméstico ao domínio público e tornando-se lideranças em organizações afro/negras, de mulheres e de mulheres negras. Tudo isso em uma região marcada pela violência contra as mulheres e as disputas entre facções criminosas ligadas às guerrilhas e ao narcotráfico, que atravessaram a autora durante sua experiência de campo.

As matronas afro-pacíficas refletem a tradição de resistência feminina negra. Elas constroem uma territorialidade fluida, o "território-água", que tanto nos remete à força das yabás, quanto desafia as dicotomias entre rural e urbano, privado e público. Em meio a contextos de violência sociopolítica, essas mulheres mantêm vivos os circuitos de reciprocidade e solidariedade.

As reflexões de Paula são permeadas por ricos diálogos com autoras negras como Lélia González, que, desde sempre, nos convida a pensar sobre a amefricanidade, e Jurema Werneck, que propõe um referencial afrocentrado de luta das mulheres a partir da ialodês do samba. Ainda é chamada para a "roda" de conceitos a autora norte-americana bell hooks, que tão lindamente escreveu sobre o amor no contexto da luta política e coletiva das mulheres. 

As concepções de referências do pensamento de mulheres negras se misturam com as vozes poderosas de mulheres como a equatoriana Inês Morales, nascida às margens do Rio Bogotá e fundadora do Movimento de Mulheres Negras do Norte de Esmeraldas, e Eva Lucia, liderança na região do Rio Mira e uma das principais articuladoras do Processo de Comunidades Negras no Pacífico Sul colombiano. 

As chaves de leitura propostas por Paula Balduíno de Melo nos permitem dizer que, sem dúvida, seu livro já "nasce" como uma referência. O texto nos inspira a ampliar o olhar e a pensar afrolatinas sob outras categorias e perspectivas de futuro. Nessa linha, vale destacar o Festival Latinidades, que nascido em Brasília, há 18 anos, nos meses de julho, sob a direção da produtora cultural e jornalista Jaqueline Fernandes, contribui para trocas entre as afrolatinas de vários países, inclusive com a colaboração da autora do livro. 

Rios e mares das mulheres seguem o caminho do encontro, aumentando ainda mais a força das águas. As histórias das afrolatinas evidenciam resiliência e capacidade de articulação em diferentes contextos. As narrativas destacam a importância de reconhecer e valorizar as múltiplas formas de protagonismo das mulheres negras na história e na contemporaneidade, seja na construção de identidades negras, no combate ao racismo e, especialmente, na busca pelo bem-viver ou simplesmente "vivir saboroso". 

Como muito bem nos convida a antropóloga colombiana Mara Viveros-Vigoya no prefácio do livro, que tenhamos "ouvidos atentos e sensíveis à força e ao poder das vozes das matronas afro-pacíficas".

 

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postado em 22/03/2025 06:00