
O seringueiro Chico Mendes, assassinado em 1988 por querer a Floresta Amazônica de pé, jamais falou "ecologia sem luta de classe é jardinagem". Mas a frase circula há décadas como de sua autoria, assim como crônicas falsamente atribuídas a Luis Fernando Veríssimo (uma delas, ele até lamentou não ter escrito) ou o poema citadíssimo de Vladimir Maiakovsk que, na verdade, é de Eduardo Alves da Costa ("Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do seu jardim", etc).
Porém, seja lá quem disse isso, é inegável que questões ambientais sejam, antes de tudo, humanas e, assim sendo, estão intimamente ligadas à desigualdade social. Desde domingo, o Correio publica a série de reportagens Futuro em ebulição, sobre os impactos nefastos da crise climática na saúde de crianças e adolescentes. Gerações que nada fizeram para entupir a atmosfera com gases de efeito estufa sofrem e sofrerão ainda mais as consequências de um modelo de desenvolvimento insustentável.
Baseadas em mais de 50 artigos recentes publicados em revistas científicas renomadas, as reportagens também trazem a avaliação de médicos da rede pública e privada, professores universitários e pesquisadores que, seja nos hospitais, seja na academia, testemunham a ação de poluentes, enchentes, secas e desastres ambientais — além do calor infernal — na saúde das crianças.
Além de herdarem um planeta infinitamente mais insalubre em comparação a seus pais e avós, as crianças sofrem demasiadamente os efeitos da crise climática porque são mais frágeis do que os adultos, não só na fase intrauterina, mas durante a infância e a adolescência, quando seus órgãos estão em pleno desenvolvimento.
O que as pesquisas estão mostrando é que, além dos já bem documentados problemas respiratórios associados à poluição atmosférica, os pequenos também correm maior risco de doenças cardiovasculares congênitas, estarão mais expostos ao aumento de enfermidades infecciosas velhas e inéditas - como foi, há cinco anos, a covid-19 e, como os idosos, são as primeiras a perecer por desidratação e estresse térmico.
Para completar, há evidências convincentes de que tanto os extremos de temperatura quanto os poluentes da queima de combustíveis fósseis afetam o desenvolvimento do cérebro, impactando na cognição, memória e saúde mental. Alguns estudos conseguiram relacionar, inclusive, a inflamação neuronal devido à exposição a partículas tóxicas e o risco aumentado de ansiedade, depressão, transtorno do deficit de atenção e às mortes por suicídio.
Embora a crise climática seja universal, os estudos também mostram que são mais prejudicadas as crianças cujas famílias têm as piores condições socioeconômicas. Para todos os desfechos médicos investigados nas pesquisas sobre saúde e mudanças climáticas, o risco é mais elevado entre os pobres.
Se até mesmo para quem tem ar condicionado em casa e no trabalho está difícil aguentar temperaturas cada vez mais desumanas, o que dizer de famílias que vivem em favelas, verdadeiras ilhas de calor, onde não há uma árvore sequer para tornar o ar mais respirável, ao sequestrar o CO² atmosférico? Em uma enchente, quem será que corre maior risco de leptospirose: meninos e meninas moradores de condomínios luxuosos ou os pequenos cuja rede de esgoto não tratada passa na porta de casa?
Questão climática é um tema suprapartidário, disse, com toda razão, a presidente da Funai, a advogada Joenia Wapichana, no evento Democracia 40 anos, realizado com apoio do Correio. Sobre isso não há dúvida — ou qual partido poderia defender a ebulição do único planeta que temos para viver?
Porém, se apartidária, a questão climática é política, segundo seus conceitos mais fundamentais. O combate à crise do clima — antropogênica, diga-se de passagem — é político e assim tem de sê-lo. Façamos nossas as palavras não pronunciadas por Chico Mendes. Sem luta contra a desigualdade social, ecologia é só jardinagem.