Opinião

Affonso vive a sonhar

Affonso Romano de Sant'anna parte para as montanhas dos sonhos, aquelas que inspiraram nossas existências e nossas palavras

. -  (crédito: Beto Magalhaes/EM/D.A Press)
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. - (crédito: Beto Magalhaes/EM/D.A Press)

Jacob Pinheiro Goldberg — Doutor em psicologia

O destino entrelaça vidas de maneira singular, e assim foi com Affonso, cuja história se confunde com a minha. O pai de Affonso Romano de Sant'anna era amigo do meu, e nossas infâncias se cruzaram nas ruas de Juiz de Fora, mais precisamente na Batista de Oliveira, onde morávamos. Affonso, ainda adolescente, passou a trabalhar em nossa casa, que também funcionava como um depósito de roupas. Frequentávamos o mesmo colégio, o Instituto Granbery, onde os laços da juventude se firmavam entre livros, conversas e inquietações. A vida, com sua cadência própria, nos permitia momentos de partilha e descoberta, nas esquinas da cidade, nos bancos escolares e na biblioteca de casa, onde ele se encantava com os mundos que os livros desvendavam.

Numa das nossas tertúlias literárias de jovens, Affonso me disse do fervoroso anseio de se realizar como escritor no mundo. Ele já não se via apenas como um leitor ou um admirador das letras: queria dar a própria voz ao papel, traçar caminhos novos, criar um universo próprio onde pudesse se expressar. Respondi com uma frase talmúdica tão apreciada pelo Granbery metodista: "Ele escreve, o escriba copia". Essa frase, simples e densa, parecia carregada de um destino que ainda se desdobrava.

Affonso me acusou, certa vez, diante de nosso amigo Lamir Sagrado, de ter influenciado seu destino poético. Meu "crime" fora sugerir que trocasse o atendimento aos fregueses de meu pai pela imersão na biblioteca de nossa casa. E ali ele mergulhou, sem retorno. Lia com voracidade, encantava-se com os poetas malditos, com os romancistas de alma incendiada, com os pensadores que desafiavam o tempo. O tempo, esse artífice silencioso, nos moldou em trajetórias distintas, mas alinhadas na mesma luta: resistimos, cada um a seu modo, pela literatura e contra os tempos sombrios da ditadura.

Sua irmã, por sua vez, integrou o Laboratório de Literatura que criei em São Paulo, no Museu de Arte de São Paulo (Masp). Affonso, com sua sensibilidade aguçada, sempre enxergou além da superfície. Seu olhar captava os detalhes, as miudezas do cotidiano, e delas fazia matéria-prima para seus versos. Ele não escrevia sobre epopeias ou feitos extraordinários; escrevia sobre o homem comum, sobre o tempo que se esfarela entre os dedos, sobre os gestos que dizem mais do que palavras. E, assim, tornava cada linha sua um espelho da vida real.

Nossos caminhos, ainda que separados pela geografia, permaneceram entrelaçados pela palavra e pelo compromisso com a arte. A vida nos reservou um encontro simbólico no Prêmio Jabuti: ele, laureado em literatura; eu, em direito. Dois caminhos, um prêmio, um reconhecimento que transcendia as categorias. Mas a verdadeira conquista estava na permanência daquilo que construímos ao longo dos anos. Era a celebração de uma amizade e de um percurso de resistência e criação.

As lembranças da juventude seguem vivas na memória, como se fossem páginas de um livro que se recusam a amarelar com o tempo. Lembro-me das longas conversas na praça, das tardes preguiçosas em que imaginávamos futuros impossíveis e dos versos rabiscados em guardanapos. Affonso tinha uma visão de mundo peculiar, capaz de encontrar poesia nos detalhes mais triviais, e essa capacidade de transmutar o ordinário em extraordinário fazia dele um observador singular da existência. Ele me dizia que a poesia não estava apenas nos livros, mas nas luzes de um poste solitário, no andar apressado de um desconhecido.

A literatura foi seu refúgio e sua trincheira. Com ela, desafiou tempos duros, enfrentou silêncios impostos e construiu uma narrativa própria. Quando muitos se calavam, ele escrevia. Quando outros hesitavam, ele publicava. E assim, palavra a palavra, Affonso se inscreveu no tempo.

Hoje, Affonso parte para as montanhas dos sonhos, aquelas que inspiraram nossas existências e nossas palavras. Mas a conversa não termina aqui. Continuaremos no boteco acadêmico, no pátio granberyense ou em seu apartamento carioca. Tenho um causo para te contar, poeta: milagre é viver; morrer, apenas um sonho dentro de um sonho. E os sonhos, meu amigo, não morrem. Eles seguem vibrando nas entrelinhas dos versos, nos ecos das memórias, na presença que insiste em permanecer.

Estou lendo nas nuvens seus versos, Affonso.

Inté. 

Correio Braziliense
postado em 15/03/2025 06:00