
Neusa Maria — Psicóloga, coautora do projeto Eu me Protejo e membro da Frente Nacional das Mulheres com Deficiência
O racismo não pode, e não deve, determinar o tempo e a qualidade de vida das crianças negras com síndrome de Down. Precisamos falar sobre essa invisibilidade. Racismo e capacitismo geram exclusão. São dois marcadores que impedem o desenvolvimento das crianças: raça e deficiência recaem sobre elas, impondo barreiras.
O conceito de raça é uma construção social para criar hegemonia e relações de poder e, imbricado com capacitismo, dificulta quando não impede a inclusão. Segundo o Centro de Controle de Doenças e Prevenção dos Estados Unidos, as crianças negras com síndrome de Down têm 54% menos chances de sobreviver do que as crianças brancas com a síndrome. A desigualdade e a falta de acesso aos serviços de saúde potencializam a vulnerabilidade e aumentam o risco de a criança não ter acesso aos atendimentos necessários à saúde, diminuindo a expectativa de vida.
O racismo é cruel e perverso, desencadeia um silenciamento e uma invisibilidade que constroem um mito de que não existem crianças negras com síndrome de Down. Esse pensamento excludente impede a intervenção precoce, e o mito criado pelo racismo vai se fortalecendo, causando vários danos — entre eles, o retardo no diagnóstico e o atraso na oferta de serviços e acompanhamento clínico.
Debater questões de raça e deficiência com um olhar interseccional é imprescindível para combater esse mito, que desencadeia omissões e impossibilita ou dificulta o acesso aos cuidados necessários para o desenvolvimento da criança afetada e sua família. A educação inclusiva deveria atender a todas sem distinção, mas o racismo é barreira concreta. A falta de políticas públicas atravessa o direito à educação, e, fora dos muros das escolas, elas não têm acesso à estrutura necessária à socialização. O ensino, que nasceu para promover a inclusão, também é atravessado com o olhar contaminado pelo racismo.
As famílias, sem auxílio de rede de apoio e informações, enfrentam vários desafios e buscam apoiar-se em outras famílias, criando um suporte emocional que é fundamental para lidar com a exclusão e a inclusão perversa que perpassam suas vidas em uma estrutura racista que gera dor e sofrimento. A falta de representatividade das crianças negras com síndrome de Down é barreira à ocupação de espaços. É a sociedade a dizer a essas crianças e suas famílias que esse avanço não é possível.
As famílias, percebendo todas essas disparidades, lutam sozinhas para furar a bolha, o racismo interseccionado com o capacitismo vai gerando novas formas de opressão. Segundo a Federação Brasileira de Síndrome de Down, em cada 700 nascimentos no Brasil, um é de crianças com síndrome de Down. O Brasil é o segundo maior país do mundo em população negra; se a maioria da população é preta, onde estão as crianças negras com síndrome de Down? E por que esse silêncio? Esse apagamento faz naturalizar o que é subproduto do racismo e discriminação, o que só reforça a necropolítica, descortinando-se o racismo como principal marcador, porque ele chega sempre primeiro, antes mesmo da deficiência.
Esse corpo dito não normativo, a corponormatividade, fortalece as crenças sociais de que existem corpos inferiores. O racismo vai se retroalimentando. A sociedade não quer se adaptar nem reconhecer essas crianças, elas e suas famílias que deem seu jeito de se adaptar às violências e às negligências que atravessam seus corpos. Em 2024, das 21 crianças com síndrome de Down que foram atendidas por mim, pelo projeto "Cromossomo do Amor", seis eram crianças negras. Mais uma vez, os marcadores sociais recaíram sobre elas com uma violência potente, gerando vários danos.
Precisamos reconhecer que existem crianças negras com síndrome de Down. Esse reconhecimento precisa vir pela intervenção de políticas públicas que possibilitem o acesso à saúde e aos cuidados básicos. Segundo Carolina Maria de Jesus, "as crianças brancas brincam nos jardins com seus brinquedos, as crianças negras acompanham as mães a pedirem esmolas". O racismo e o capacitismo recaem sobre elas com tanta força que chegam a tirar delas o principal direito: o direito à vida. O sofrimento das crianças negras com síndrome de Down é flagrante retrato do Brasil desigual e, como dizia Carolina, de "uma desigualdade trágica!"