
Dia desses, zapeava na televisão quando me deparei com um documentário a respeito de uma das páginas mais medonhas da história deste país, uma das muitas atrocidades cometidas durante o regime ditatorial que manteve a nação sob seu jugo por 21 anos. De pronto, me veio à mente a frase de Ulysses Guimarães, de "ódio e nojo da ditadura".
Neste momento, em que refletimos sobre o passado sombrio do país, especialmente na esteira de Ainda estou aqui, destaco esse documentário, sobre outro dos muitos casos de horror daquele período: a Operação Camanducaia.
O filme de mesmo nome, lançado em 2020, aborda a prisão arbitrária de 93 crianças e adolescentes — em situação de rua ou pertencentes a famílias de baixa renda — pela polícia de São Paulo, em outubro de 1974. Eles foram agredidos, colocados em um ônibus e levados para Camanducaia, cidade no sul de Minas Gerais. A intenção dos algozes era "limpar" as ruas de São Paulo.
Ao chegarem a terras mineiras, numa madrugada fria e chuvosa, os meninos foram abandonados nus e famintos. Até hoje, não se sabe o paradeiro de 52 deles.
O documentário traz o depoimento de três dessas vítimas, como David Francisco. Ele chora ao relembrar o que aconteceu. "Eu rezava para Nossa Senhora Aparecida", disse. Contou que os policiais, depois de fazê-los descer do ônibus, mandaram que corressem e dispararam diversos tiros. "Com medo, você nem olha para trás. Eu estava com fome, apavorado, não sabia para onde ir."
Outra vítima, Paulo Barreto relatou que, quando os policiais, mascarados, os colocaram no ônibus, disseram que iam levá-los para casa, mas as cortinas nas janelas não permitiam que vissem em que direção o veículo estava indo.
Armando Ribeiro é outro que chora ao falar do desespero daqueles momentos. "A gente fica perdido, doido. Eu me senti sozinho, não tive coragem de gritar, não tinha voz."
A barbárie chocou a sociedade na época, mas as supostas investigações não evoluíram, e o caso foi arquivado. Como afirma o diretor do filme, Tiago Rezende de Toledo, a história acabou esquecida por nossa memória coletiva.
Apesar de reviver a dor, Armando ressaltou a importância de falar daquele outubro. "É bom que todos saibam o que foi a ditadura militar." E foi um regime tão brutal que não poupou nem crianças e adolescentes. Até bebês padeceram.
Não podemos nos esquecer da vítima mais jovem da ditadura, Carlos Alexandre, de 1 ano e oito meses. Em janeiro de 1974, o menino, filho de um casal considerado subversivo, levou um soco na boca, por ter chorado, e foi jogado no chão durante uma investida de agentes da repressão à sua casa, em São Paulo. Levado por militares, ficou 15 horas sob poder deles. Segundo relatos, foi torturado com choques elétricos.
Carlos Alexandre nunca se recuperou do trauma. Tomou antidepressivos e antipsicóticos e tinha fobia social, sofrimento que durou até 2013, quando tirou a própria vida.
Foi esse regime hediondo que perdurou por mais de duas décadas no Brasil, torturando, matando, estuprando, reprimindo, cassando direitos. Temos de relembrar, e vigiar, para que jamais se repita. É preciso, sempre, ter ódio e nojo da ditadura.
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