Opinião

O que o abandono da pauta de diversidade e inclusão nos diz?

O abandono da diversidade não é apenas mais uma decisão corporativa. É um reflexo de como narrativas podem ser manipuladas para servir ao poder

Opinião 2001 -  (crédito: Caio Gomez)
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Opinião 2001 - (crédito: Caio Gomez)

Jaques Paes Especialista em projetos e professor do MBA de ESG e sustentabilidade da FGV

Nem toda narrativa é um fato. Nem todo fato vira narrativa. Enquanto o leão não aprender a escrever, a história do caçador será sempre exaltada, diz o ditado. Amazon, Meta e Alphabet têm acesso e controlam mais dados e informações do que todos os sistemas ditatoriais da nossa história moderna juntos. Essas empresas, com Disney, McDonald's, Walmart, Boeing, entre outras tantas, estão abandonando suas políticas de diversidade e inclusão. Mas por quê?

Uma leitura apressada pode apontar para cortes de custos, tempos de incerteza ou pressões de investidores. No entanto, seria ingênuo parar por aí. A narrativa do abandono dessas pautas carrega um profundo significado simbólico e ideológico. Afinal, por que justamente essas empresas, que moldam tanto a nossa realidade, estão retrocedendo em políticas que, em tese, representam progresso social? Talvez nunca tenha havido um compromisso genuíno com a diversidade, mas apenas um esforço para cumprir expectativas de mercado e mitigar riscos reputacionais. Ou talvez a diversidade tenha sido cooptada e esvaziada de seu potencial e, finalmente, descartada.

A narrativa de Ulisses, arquétipo do herói que venceu todo tipo de adversidade, rompeu as barreiras do tempo e se tornou a base para histórias na cultura moderna. De heróis a comédias, sempre há uma adversidade a ser superada que impacta vidas e destinos, e quase sempre há algo ou alguém a ser salvo, incapaz de salvar-se a si.

Adversidades catalisam a diversidade; a necessidade de superá-las leva à valorização da diversidade, que, por sua vez, reúne múltiplas perspectivas e abordagens. Ambas são moldadas por narrativas, pois a mente humana se organiza por meio de histórias — ou estórias — para dar sentido ao mundo. Daí surge o storytelling, uma narrativa ferramental que cria significado, empatia e conexão social. No final, somos contadores de histórias, e isso nos ajuda a viver em sociedade.

Jerome Bruner, pioneiro da psicologia cognitiva, definiu o pensamento narrativo como uma forma de organizar o conhecimento, distinta do pensamento lógico-científico. Ele interpreta experiências, imagina realidades e cria histórias para organizar o pensamento. Contudo, nas mãos do poder, narrativas deixam de ser instrumentos de libertação e passam a ser ferramentas de controle. Assim, a diversidade corporativa, em vez de ser um ato genuíno, tornou-se uma história conveniente, moldada por quem detém o poder.

A queda da diversidade não se deve a ela mesma, mas às narrativas que a esvaziaram. Uma onda de abandono de uma pauta não nos diz que a pauta é o erro, mas, talvez, como a narrativa foi construída e defendida. O que deveria ser uma prática inclusiva foi institucionalizado, convertido em métricas e discursos descolados de uma possível realidade, e reduzido a instrumento de marketing e relações públicas. O abandono atual reflete não uma falha intrínseca da diversidade, mas uma narrativa mal construída, que a transformou em mais uma engrenagem do mercado. Não se pode negar, no entanto, a subjetividade das questões culturais, pois ela é uma esfera de liberdade e crítica, e não um instrumento para justificar qualquer tipo de controle ou subordinação.

A cultura de massa foi transformada em uma ferramenta de controle ideológico, absolutizando uma racionalidade e excluindo a subjetividade que a compõe. A razão, que deveria libertar, tornou-se instrumento de opressão. Foi o que disseram Adorno e Horkheimer em 1940, ao analisar as contradições do projeto de esclarecimento (ou iluminismo, em termos mais atuais) e seu impacto na sociedade. Curioso, não?

Vemos agora uma narrativa perigosa emergir: a ideia de que o abandono da diversidade é o prenúncio do colapso do ESG como um todo — uma distorção conceitual. Diversidade e governança são pilares interligados no ESG; a governança deveria assegurar que a diversidade fosse tratada com seriedade, definindo limites claros para a gestão, mas ela tem cedido às lógicas de controle e subordinação, permitindo que a diversidade seja reduzida a mais um elemento descartável no arsenal corporativo. O que deveria ser um compromisso genuíno tornou-se um instrumento de distorção cultural, um reflexo de subordinação disfarçado de estratégia e enfraquecido por aqueles que controlam as narrativas.

No Brasil não há, oficialmente, um abandono das pautas de diversidade e inclusão, mas há sinais de enfraquecimento. A prioridade dessas iniciativas caiu de 24% em 2019 para 18% em 2022, como mostra a pesquisa do Great Place to Work (GPTW), que apontou também a falta de maturidade das empresas para sua implementação e que outros temas têm as colocado em segundo plano.

O abandono da diversidade não é apenas mais uma decisão corporativa. É um reflexo de como narrativas podem ser manipuladas para servir ao poder. O problema não está na pauta, mas na história que foi contada sobre ela — e naqueles que a contaram. Entender gestão é entender o comportamento humano e como os valores são negociados no contexto organizacional.

 


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postado em 20/02/2025 06:00