
Maria Lúcia Verdi — Mestre em literatura brasileira, poeta e cronista
Estando em Londres, li a crítica de Laura Cumming sobre a mostra Brasil!Brasil! O nascimento do modernismo e fui visitá-la na Royal Academy of Arts. O título do texto era Brasil!Brasil! The birth of modernism review — spot the standouts in lavish display of bafflingly weak art (Crítica de Brasil! Brasil!O nascimento do modernismo — identifique os destaques na exibição luxuosa de arte desconcertantemente fraca, em tradução livre). É inaceitável. Classificar amostragem de período restrito da arte brasileira como "arte desconcertantemente fraca" é superficial, cheirando a preconceito e falta de conhecimento. E tampouco a mostra é luxuosa (e, se fosse, em se tratando de onde está exposta, não seria tão destoante...), mas, sim, elegante, muito bem apresentada visualmente. Tampouco se pode sintetizar o Brasil apenas como "uma nação convulsionada por ditaduras e golpes." Cumming alerta o público de que não verá nada do Brasil de hoje, provavelmente não conhecerá nenhum dos artistas expostos.
A leitura dos primeiros anos do modernismo brasileiro não é simples, e é constante a polêmica sobre a importância de cada um dos artistas selecionados, como avôs e avós do que vem a ser a respeitada arte brasileira contemporânea. Os próprios artistas e críticos brasileiros, a partir da década de 50, se voltaram contra o espontaneísmo e nacionalismo anterior, presentes na mostra em questão. Lá estão Burle Marx, Anita Malfatti, Lasar Segall, Tarsila do Amaral, Vicente do Rego Monteiro, Portinari, Flávio de Carvalho, Djanira, Volpi, Geraldo de Barros e Rubem Valentim. Estranhei a ausência de Di Cavalcanti, Goeldi e Ismael Nery. Seleção curiosa, pois Burle Marx, Geraldo de Barros e Rubem Valentim não podem ser considerados antecedentes do modernismo, nem exatamente modernistas. A seleção de obras é importante também por ser pouco vista, grande parte pertencente a coleções privadas. Surpreenderam-me obras de Flávio de Carvalho e Burle Marx, que nunca tinha tido a oportunidade de ver.
A mostra é uma oportunidade para entender como a periferia reprocessa a arte moderna a partir de uma historicidade própria. Quando Cumming se refere a antecedentes, ou influências, expressa desprazer em ver o diálogo que a arte brasileira do início do século passado teve com os ismos europeus. Temos a impressão de que nega o interesse de uma exposição que, apesar de uma peculiar curadoria, pretende mostrar as raízes do que vem a ser a arte brasileira atual. A crítica de arte praticada hoje reconhece que o produzido em países do Sul foi vítima do malfadado etnocentrismo europeu.
Cumming desconhece a complexa realidade brasileira, apenas reverenciando artistas (reverenciáveis) como Lygia Clark, Oiticica e Niemeyer, sem considerar o quanto da brasilidade exposta na mostra em causa tem a ver com a produção desses artistas. Lygia Clark e Hélio Oiticica são visceralmente ligados à paisagem e às atitudes típicas do brasileiro — corporeidade, afetividade, carnaval, presentes nas pinturas expostas. Diz "lamentar ter visto" Segunda classe, de Tarsila, "brasileiros descalços como fantoches piegas, com rostos iguais, adultos e crianças se parecendo". A fome iguala e os miseráveis são, sim, fantoches do poder. Creio que a autora vê a mostra apenas pelo ângulo estético, sem considerar o quanto hoje se está atento às condições em que a arte surge, haja vista a valorização, até a exaustão, da produção de todas partes do mundo.
Sobre Anita Malfatti, só menciona ter sido ela mal recebida à época, sendo que o melhor da artista está presente. Não compreende a diversidade de Lasar Segall, incapaz de dizer algo, por exemplo, sobre suas pinturas dos troncos de árvores, pinturas essas mais próximas das preferências da crítica — geometria e construtivismo —, haja vista seu interesse pelos trabalhos de Rubem Valentim, que desconhecia. Tampouco dá atenção aos trabalhos de Volpi.
É uma visão ultrapassada julgar que nossos artistas meramente tentaram copiar a vanguarda europeia, sem contribuição própria, disso já falava Oswald de Andrade ao se referir a nossa atávica antropofagia — antropofagia que existe desde sempre na relação entre as artes de todas as origens. Cumming deveria fazer uma viagem pelo Brasil inspirada pela feita por Mário de Andrade, descrita no O turista aprendiz. A boa crítica de arte é um aprendizado sem fim.