Opinião

O racismo é sólido, líquido e gasoso

Como a matéria, o racismo se constitui de diversos modos, e suas manifestações nem sempre são tão facilmente identificáveis

Em 2023, foram registradas 722 ocorrências de injúria racial no Distrito Federal, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP/DF) -  (crédito: Caio Gomez)
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Em 2023, foram registradas 722 ocorrências de injúria racial no Distrito Federal, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP/DF) - (crédito: Caio Gomez)

André Lúcio Bento — Doutor em linguística, especialista em cultura africana, professor e escritor 

 Certo dia, um homem preto decidiu jantar num restaurante metido a grã-fino em Brasília. Ele estava de terno e gravata, pois tinha acabado de sair de uma importante reunião na Câmara Legislativa do Distrito Federal. Na entrada do estabelecimento, um casal branco estava sendo atendido: "Os senhores fizeram reserva?", "Estão aguardando mais alguém?", "Têm preferência por mesa no canto?". O homem preto era o próximo da fila. Quando resolveu a vida do casal, o funcionário se virou para o homem preto e perguntou: "Você é motorista de iFood?"

O homem preto era eu. E esse questionamento se eu era motorista de aplicativo só me foi feito porque eu não estava chegando num restaurante self-service de Brasília ou numa das bancas que servem mocotó e sarapatel em muitas das feiras do Distrito Federal. Eu não estava vestido de roupa de napa preta, não estava com capacete na mão e nem com mochila vermelha nas costas. Mas minha cor indicia para muitas pessoas os lugares que cabem a mim frequentar. 

Eu trago esse episódio do restaurante para ilustrar como o racismo é uma ideologia essencialmente criativa e plástica, mas sempre perversa. Como a matéria, o racismo se constitui de diversos modos, e suas manifestações nem sempre são tão facilmente identificáveis. O casal era "os senhores"; eu era "você", o motorista de aplicativo. Não que eu faça questão de ser chamado de "senhor", mas, se esse é o protocolo de tratamento nos restaurantes, que seja a forma utilizada para pretos e brancos. Como no estado gasoso da matéria, o racismo se expande e assume formas diversas e, nesse caso, se transmuta numa pergunta e numa escolha pronominal. Ele também se dá por meio de um olhar inquiridor, de desconfiança, de dúvida e da quase certeza de que pretos têm seus lugares naturalmente definidos. No nível da representação social, as cidades também são divididas racialmente.

O mesmo estranhamento do funcionário diante da minha presença naquele restaurante foi o que aconteceu em 1951, quando a dançarina estadunidense Katherine Dunham veio se apresentar no Brasil e, em São Paulo, foi questionada por um recepcionista do hotel se, na condição de mulher preta, poderia se hospedar lá. Isso quase nos colocou diante de uma crise diplomática, e os Estados Unidos praticamente exigiram do Brasil uma retratação. Como resposta, surge a Lei Afonso Arinos, feita às pressas e cheia de brechas. 

No que diz respeito ao seu caráter material, o processo de solidificação do racismo, no nosso país, tem contribuição do Estado brasileiro. A começar pelos quase 400 anos dedicados à escravização como prática e fundamento que regularam a economia, a justiça e a política. Quando se promulga a Lei Eusébio de Queiroz, em setembro de 1850, que pôs fim ao tráfico escravagista, no mesmo mês publica-se a Lei de Terras, criando uma série de obstáculos para que o povo preto pudesse ser dono de um lote. O Decreto 1.331, de 1854, estabelecia a proibição de ingresso nas escolas "dos meninos que padecerem de moléstias" e de "escravos"; em 1878, o Decreto 7.031-A reservava para o turno noturno o espaço para pessoas negras. Além dessas leis e decretos, as Ordenações Filipinas exigiam a "dispensa do defeito de cor" para os pretos que desejassem ocupar cargos no serviço público ou no sacerdócio.

As medidas racistas do Estado seguem no período pós-abolição. Acho que as elites, de vez em quando, se lembram de que o projeto inicial era formar por essas terras aqui um país europeu, tropical e branco. Mas não combinaram com nós, os pretos. E nós resistimos à colonização, à escravização e ao nosso extermínio. Enfrentamos o Decreto-Lei 7.967, de 1945, de Getúlio Vargas, que estimulou a vinda de imigrantes com "características mais convenientes da sua ascendência europeia"; enfrentamos a criminalização do samba, da capoeira e das religiões de matriz africana; enfrentamos a polícia fazendo revista e exigindo documento de identificação de ex-escravizados. Hoje, enfrentamos o perfilamento racial das abordagens policiais, a forma não democrática que os governos utilizam para compor seus cargos de chefia (a gestão estatal é branca); enfrentamos a lentidão ou a falta de vontade da Justiça em reconhecer e punir os crimes de racismo.

O projeto de um país branco em meio a onças, tucanos e tamanduás não acabou. Não se enganem! E o racismo continua performático e cínico, ora de forma sólida e perceptível, ora, como os líquidos e os gases, ocupando todos os espaços, marcando nossa sociedade e se constituindo como um sistema de poder e de opressão.

 

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postado em 01/02/2025 06:00