Opinião

Além das telas

Ainda estou aqui traz à baila um momento da história brasileira que não pode, e não deve, ser omitido, principalmente às novas gerações

Ricardo Nogueira VianaDelegado-chefe da 35ª DP, professor de educação física e mestrando em direitos humanos e segurança pública pela UFG 

 

Na madrugada de 6 de janeiro, o Brasil e o mundo reverenciaram a multifacetada atriz Fernanda Torres, premiada por sua brilhante atuação no filme Ainda estou aqui. Filha de outra memorável Fernanda, a intérprete desempenhou o papel de Eunice, esposa de Rubens Beyrodt Paiva, um deputado federal que teve o seu mandato cassado durante a ditadura. Após a perda dos direitos políticos, Paiva foi exilado e retornou ao país, onde desempenhava a profissão de engenheiro. No início dos anos 70, o brasileiro, ex-parlamentar, pai de cinco filhos e marido, saiu de casa escoltado por agentes da repressão e não mais retornou ao seio familiar. Violaram o seu domicílio, foi torturado, morto, ocultaram o seu cadáver (crimes); os responsáveis não foram identificados (impunidade).

Parabéns à atriz brasileira. Entretanto, não há de se rechaçar que prêmios desse gênero e monta são ladeados por uma perspectiva política e econômica. O filme nacional concorria ao prêmio de melhor filme em língua não inglesa e foi derrotado pela película francesa Emília Pérez. Ao meu sentir, a Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood (HFPA), responsável pela premiação, ao escantear a nossa produção, perdeu ou não quis ter a oportunidade de trazer luz quanto aos desrespeitos aos direitos humanos que foram, e ainda são, violados constantemente no mundo. 

Falo isso, pois o ser humano ainda flerta com ideias fascistas, que suscitam o extremismo político em que ultradireitistas tentam impor não uma nova, mas uma já conhecida ordem, baseada na segregação e no subjugamento dos menos favorecidos. O filme narra um dos períodos mais obscuros do Brasil e que fez sombra a vários países da América Latina. Com o apoio externo, militares tomaram o poder, impuseram um governo autoritário, lacraram o Poder Legislativo e suprimiram direitos individuais dos cidadãos, dando contornos a um regime de exceção que, até hoje, deve respostas à nossa sociedade.

Foi explícito e promíscuo o envolvimento das Forças Armadas e da Polícia com o regime absoluto. Em comum a essas duas instituições é a possibilidade legal de exercer o controle social através do uso da força. Essa prerrogativa não pode ultrapassar os direitos individuais do cidadão, contribuinte, que é quem remunera aqueles que têm o dever de promover e não aniquilar direitos fundamentais. Ambas as forças entraram em estado de beligerância com aqueles que se opuseram ao regime ditatorial, com o intuito ou o pretexto de combater um inimigo que se sabe lá se existia. Inimigo esse que continua vivo e latente no imaginário de alguns, os quais, há dois anos, ensaiaram uma nova insurreição quanto ao Estado Democrático de Direito.

Ainda criança, não conhecia tampouco tinha ouvido falar em Rubens Paiva, Vladimir Herzog, Stuart Angel e nas outras quatro centenas de pessoas desaparecidas, ou melhor, mortas nos "anos de chumbo", conforme relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Entretanto, lembro-me que no ano de 1974, quando esperava o meu irmão me buscar no jardim de infância, ele não apareceu. Era uma criança de 4 anos que, quando cheguei em casa, vi a nossa mãe chorando e algumas palavras me fizeram entender que o primogênito, então estudante de sociologia da Universidade de Brasília (UnB), havia sido preso. Ele conseguiu voltar, mas muitos, como Honestino Guimarães, líder estudantil da mesma universidade, não retornaram aos seus familiares.

Não ganhamos o melhor filme, mas é fato que, por trás da estatueta de Fernanda, há uma história real escrita por Marcelo, filho de Rubens Paiva. Enredo que foi carreado às telas por Walter Salles, um cineasta que já esteve no mesmo páreo ao dirigir Central do Brasil, um filme que trazia como protagonista Fernanda Montenegro, que concorreu ao mesmo prêmio que a filha em 1999. Um dia, poderemos esquecer desse novo filme, mas não o que ele narrou. Não há evolução de uma nação sem conhecer e refletir sobre o seu passado. Ainda estou aqui traz à baila um momento da história brasileira que não pode, e não deve, ser omitido, principalmente às novas gerações que não sentiram o temor dos tanques, fuzis e baionetas e vislumbram o regime ditatorial como uma possibilidade. 

Urge lecionar que o poder é do povo que o exerce por meio dos seus representantes, que nossos direitos e garantias individuais são inalienáveis e estão petrificados na nossa Constituição. Rememorando o inglês Winston Churchill: "A democracia é o pior dos regimes políticos, mas não há nenhum sistema melhor que ela". Que venha o Oscar ao melhor filme.

 

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