São quase 6h da manhã e a chuva, farta, convida para ficar na cama. Concorre com o cheiro do café que vem de algum apartamento vizinho. Despertei pensando em qual seria o tema deste artigo. Acordo de cessar-fogo no Oriente Médio, posse de Donald Trump, incêndios florestais devastadores na Califórnia, a Venezuela se afundando graças a um ditador sedento pelo poder... Apesar de reconhecer a importância de todos esses assuntos, decidi escrever sobre algo mais profundo e mais complexo — e simples, ao mesmo tempo: a vida.
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Todos nós nascemos um dia e aprendemos a andar, mesmo sem saber o caminho da nossa jornada. Apesar de nos recusarmos a pensar sobre isso, um dia, também morremos. E a vida só faz sentido se esse intervalo for intenso de paz e de amor. Um repositório de boas lembranças.
Elas povoam o meu coração a todo o tempo. Alguns diriam que sou um quase cinquentão saudosista. Talvez seja verdade. A saudade faz parte de mim. Tive uma infância marcada pelas férias de julho em que acampávamos em praias do Araguaia. Família inteira, umas 100 pessoas, mais alguns amigos. Quinze dias de comunhão com o rio e de imersão na natureza. Mas, também, na amizade, nos fortes laços que nos uniam. Aquilo tudo parecia inquebrantável, perene, constante.
As rodas de conversa em torno da fogueira; o céu salpicado de estrelas; o barulho dos guaribas, dos grilos e das gaivotas, o som da mata; os banhos sobre os bancos de areia, no meio do rio; o cheiro da palha que cobria o rancho; o som da canoa, com o motor de popa acariciando a água, ou dos pés deslizando pela areia branca.
Outro momento que me marcou foram os fins de semana na fazenda de meus avós. As pamonhadas, típicas em Goiás, as tardes na piscina ou as manhãs de futebol com os primos. Os diálogos regados à ciência, astronomia e filosofia com o meu avô. Os bolinhos de arroz da minha avó. O leite com conhaque tomado no curral, ao pé da vaca. A sinfonia matinal composta pelo gado, pelo galo e pelos passarinhos. As vozes de meus avós conversando, ao acordarem bem cedo.
Tudo isso se perdeu com o tempo. Virou saudade. Tomou espaço, no coração, aconchegado com a gratidão e o amor. Hoje, meus avós vivem no meu peito e na minha memória. A turma do Araguaia tomou rumos diferentes: uma parte partiu para as estrelas, outra parte foi tomada pelos compromissos da vida. E os laços ou se romperam ou deixaram de ser tão intensos como os dias no Araguaia.
Hoje, vejo que a vida nos ensina. A viver cada momento em sua plenitude. Imaginar que, um dia, ele ficará preso às lembranças. A honrar os avós e guardar sua memória em uma caixinha de joias lá no fundo da alma. Entender que nossa jornada por aqui é como um rio, que alterna calmaria e águas turbulentas, remansos e pedras pelo caminho. E que precisamos seguir, até o dia em que chegaremos à foz e deixaremos a nossa história. Também nos tornaremos saudade em quem fica. Até lá, que o nosso leito seja tomado de bons sentimentos, de paz, de força e, sobretudo, de boas recordações e de esperança de dias melhores. Sempre.