José Alberto Silva
Diz-se que o racismo, equívoco da sociologia universal, persiste no prejuízo do Brasil, por termos mais tempo de servidão do que de liberdade. Isso introjetou-se no povo como complexo de vira-latas pela desvalorização de negros e indígenas, para justificar a espoliação de seus membros, mesmo que sobrem informações que não enganam mais ninguém de que trabalho e cultura neste país se devem às suas origens. Receia-se, assim, a reinvindicação de direitos humanos, que só podem ser contidos à força de fuzis legais e ilegais em escancarado genocídio do negro que não morre.
No esforço pela dignidade, os pais exigem de seus filhos que façam melhor do que os que pensam que são brancos, como disse o Chico Buarque. Silenciados ou impedidos de avançar, desenvolvemos alta qualificação. Se, por um lado, somos travados com maior força pela covardia dos incompetentes; por outro, somos boicotados pelo descrédito que nos impomos, paradoxalmente, não reconhecendo habilidades que pululam em nossos iguais. Não projetamos alívio, confiança em bom atendimento profissional, alegrias pela ajuda mútua e realizações por qualidades visíveis por brancos "de alma pura". Com o espírito de porco, cooptado pela branquitude perversa, lutamos contra nossos interesses, afônicos ao dar à sociedade branca o que temos de melhor em busca do pão do reconhecimento desproporcional ao nosso merecimento.
Recrudesce o olho concorrente sobre a revolta intelectual negra que se atreve a roubar-lhe espaços, antigamente, seus nichos de realização. Também valorizamo-nos menos, como se a disputa fosse entre nós em busca de uma única vaga para ser exceção à regra. Parecemos inocentes frente à luta nem tão silenciosa rumo a um conflito racial, sem registro porque o negro sabia seu lugar. A graduação sempre foi para poucos, vedada à comunidade majoritária que produzia exceções geniais ou vaidosas. Essas rejeitam suas origens, para ficarem com a hipocrisia de sorrisos que escondem ranger de dentes ou aplausos que não emitem som.
Um negro graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) era concessão da Isabel, da qual não se sabe de nenhum outro ato de grandeza. Tal exceção negra queria ser ouvida pela negrada, ou se envaidecia de ser uma exceção de alma branca. Sempre, no entanto, a exceção justificava a democracia racial fantasiosa. Ameaça, por cotas, é graduar 36, saindo da subalternidade do trabalho braçal, do salário insustentável, no tanque e na cozinha em condições análogas à escravidão. Aí, torna-se demais. Desde a escravidão "tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado...", sem reconhecimento, em troca da sobrevivência para termos redentores, como disse a Mangueira, em 2019.
Entre famílias, convivemos por gerações, em clubes, encontros casuais, eventualmente em nossas relações de trabalho. Nosso afeto é enviesado, uma vez que projetamo-nos conforme a sociedade nos carimba, como gente pouco confiável. Nos terreiros de matriz africana, abrimos portas para eles que se instalam em bairros de classe média, onde batucam com permitida estridência até a madrugada em dias de semana. Pretas velhas, por 388 anos, amaram orixás surdos para suas sinetas e tambores, humilhadas enquanto lavavam, cozinhavam, eram amas de leite. Os "espiritualizados" pele clara cobram altos preços a título de dedicação exclusiva, a partir de cursos rápidos da internet, ensinam a conquistar vagas de bons empregos ou a matar a concorrência de uma vez. No samba, jovenzinhos aloirados são mestres de bateria, sem nunca haverem tocado um tamborim, mas dizem descender da Tia Ciata.
Aceitamos, alegando perda de voz em ouvidos moucos. Bestializados pela opressão que mata, despersonaliza, anula ou enlouquece, silenciados, perdemos a memória de nossas origens nas periferias, lugar de lanhos curados com sal cristão que enriquece e faz a pose de uma grandeza eurocêntrica baseada no saque da África e da Ásia. Negamos lembrança de sambistas espancados pela polícia, conforme a lei antivadiagem. Estamos custando a ter respeito uns pelos outros, não é mesmo? Nosso adoecimento coletivo, marcado a ferro, fome e violência, impede-nos de ouvir organizações rivais gritando: despertai! Outros, para atingirem objetivos, devem se alinhar à dependência de sua vontade, os negros devem se submeter a uma série de "considerandos", visíveis e invisíveis, com nenhum sob seus domínios. Inconformidade com isso é doentio ou tendência à criminalidade. A pergunta é: como recuperar nossas vozes africanas?
*Articulista da Frente Negra Gaúcha