
André Mendes Pini*, Gustavo Menon**
O retorno de Donald Trump à Casa Branca vem gerando a expectativa de flagrantes inflexões da posição dos Estados Unidos em diversas temáticas, tanto do ponto de vista doméstico quanto internacional. O cenário político que Trump adentra em seu segundo mandato é bastante distinto daquele de 2017. Sua plataforma de extrema-direita foi capaz de cooptar os Republicanos e tomar para si o partido, alijando vozes dissonantes mais moderadas e consolidando a sua dimensão reacionária. Já do ponto de vista internacional, Trump visa implodir o multilateralismo, voltando os olhares dos EUA ao seu entorno regional, sob auspícios expansionistas e imperialistas. Esse cenário gera distintas preocupações na comunidade internacional e levanta a questão: quais os impactos dessa inflexão norte-americana para a América Latina e para o Brasil?
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A eleição de Trump para um segundo mandato certamente terá impactos significativos em toda a América Latina e o Caribe, justamente a região em que o Big Stick de Trump pretende atuar. No caso do México, espera-se um aumento da pressão para conter a imigração ilegal, com a possível imposição de tarifas sobre as importações mexicanas e a aceleração da construção do muro na fronteira, para além da tentativa de rebatizar o Golfo do México. Para Cuba, já nos primeiros decretos podemos observar um retrocesso nas relações diplomáticas, com o retorno da ilha à lista de países patrocinadores do terrorismo.
O Panamá, por sua vez, está sofrendo pressões em relação à autonomia do seu canal interoceânico, ameaçando a soberania do país centro-americano. Enquanto esses países devem sofrer uma pressão mais direta, o restante da região não estará no escopo de prioridades de Trump, que estará focado nos seus inimigos domésticos e em questões estratégicas para os EUA, como a Ucrânia, a Otan e a China.
Na América do Sul, a Venezuela poderá ver o retorno da estratégia de "pressão máxima", com a intensificação das sanções econômicas e o aumento do isolamento diplomático do governo Maduro. Já Argentina e Equador, sob os governos de Javier Milei e Daniel Noboa, respectivamente, podem se beneficiar, em um primeiro momento, de um alinhamento ideológico com Trump, fortalecendo setores da extrema-direita na região.
Do ponto de vista brasileiro, chama a atenção o fato de o próprio Trump reforçar que o Brasil supostamente precisaria mais dos EUA do que os EUA precisariam do Brasil. Essa visão do presidente estadunidense demonstra a percepção de que o Brasil é um país secundário no escopo das relações preferenciais de Washington e, ao mesmo tempo, corrobora a postura tradicional do Itamaraty de que a inserção internacional do Brasil deve ser pautada pela autonomia e pelo pragmatismo, priorizando a manutenção de um escopo universalista de parcerias em vez de um alinhamento aos EUA.
Esse debate frequentemente ganha visibilidade sob o prisma da polarização política brasileira, que, erroneamente, associa ao bolsonarismo um potencial de aproximação com Trump, enquanto relega o governo atual à posição de antagonistas de Washington. Essa visão não poderia ser mais equivocada. Apesar de o bolsonarismo representar um eixo político de extrema-direita com inequívoca sinergia com o governo Trump, o histórico diplomático brasileiro demonstra que afinidades ideológicas entre as gestões de Brasília e Washington pouco influenciam nas diretrizes do relacionamento bilateral entre os países.
Sob as gestões do PT, a política externa brasileira vem sendo conduzida conforme as linhas históricas do Itamaraty, que pleiteiam uma visão universalista de inserção internacional, com prioridades não excludentes nas relações tanto com os países do Norte quanto com os países do Sul. Isso significa que o relacionamento com o Brics, a América Latina ou a África não é conduzido em oposição à relação com os EUA ou com a Europa, mas, sim, em um tom de complementaridade.
A política externa brasileira historicamente já demonstrou seu ceticismo com relação a um alinhamento meramente ideológico aos EUA. Mais recentemente, ao longo do período em que Bolsonaro e Trump estiveram à frente de seus países, o Brasil aderiu a um trumpismo tropical que se distanciou das tradições diplomáticas do Itamaraty e cujo marco simbólico foi a adoção de uma postura negacionista e anticientífica frente à pandemia de covid-19, resultando em mais de 700 mil mortes no Brasil.
Nesse sentido, percebe-se que a política externa brasileira sob o governo Lula está bem posicionada para enfrentar as vicissitudes provocadas por Donald Trump na ordem internacional. A postura universalista e autônoma do Itamaraty permite ao Brasil manter as relações com Washington de maneira pragmática, ao mesmo tempo em que permite a manutenção de uma posição de crescente influência tanto no entorno regional latino-americano quanto mediante o Sul Global como um todo.
A multiplicidade de relacionamentos com parceiros estratégicos, como a China e a União Europeia, oferece, ainda, ao Brasil a possibilidade de contrabalancear a influência norte-americana e reagir de maneira pragmática às inflexões que Trump busca imprimir na política externa dos EUA. Os Estados Unidos certamente são mais importantes para o Brasil do que vice-versa, no entanto, o Brasil está longe de depender dos EUA para conduzir uma inserção internacional pragmática e autônoma.
Professor na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), doutor em relações internacionais pela Universidade de Brasília (UnB)*
Professor no Prolam-USP, coordenador do curso de relações internacionais na Universidade Católica de Brasília (UCB)**