
JOÃO NETTO — Redator da rede global de publicidade WMcCann e membro do Conselho de Igualdade Racial do Distrito Federal
Lembro da primeira vez que pesquisei sobre Maria Felipa, liderança na independência da Bahia. Eu havia escrito um texto sobre a importância histórica de Salvador e listei alguns nomes de personalidades. Em resposta à pesquisa no Google, surgiu uma foto associada ao seu nome. Era uma mulher negra, de lábios grossos, usando um turbante estampado, brincos de semente e um vestido com os ombros à mostra. Ela olhava para frente com uma expressão séria, como se estivesse encarando as pessoas que iriam admirar sua imagem no futuro.
Pouco tempo depois, escrevi sobre Luiza Mahin, mãe do expoente negro Luiz Gama e figura associada à Revolta dos Malês. Quando fui pesquisar pelo seu rosto, para minha surpresa, surgiu a mesma foto que afirmava ser de Maria Felipa. A mesma mulher imponente e forte, com o mesmo olhar hipnotizante.
Como se já não bastasse essa representação equivocada de dois nomes tão poderosos, ao pesquisar sobre Tereza de Benguela, uma brilhante rainha quilombola do século 18, a mesma imagem era apresentada. Nem mesmo a realeza conseguiu escapar do apagamento histórico.
O mais contraditório nesse cenário é que, por mais que represente diferentes personalidades, a mulher da foto não tem seu nome registrado. A fotografia tirada por Alberto Henschel em 1870 é nomeada apenas como "A Mulher negra de turbante". Esse registro está presente nas nossas vidas em diferentes formatos de mídia. É utilizado em capas de livro, publicidades, artigos acadêmicos, sites de notícias e até mesmo em cursos de letramento racial. Tudo isso devido a estar associado aos nomes dessas mulheres.
Essa forma genérica de representar a população negra é uma das consequências do racismo que busca apagar nossos feitos e faces. É mais fácil ignorar a existência de alguém se não soubermos como ela é.
É muito comum encontrarmos personalidades negras, especialmente mulheres, que têm a sua existência e imagem questionada. Isso acontece, especialmente, quando elas são ligadas a momentos históricos e de grandes contribuições sociais. Tal questionamento vem da escassez e quase ausência de registros oficiais que mencionem mais claramente seus feitos.
Porém, é importante observar que, por séculos, houve uma falta de interesse e preocupação em registrar as colaborações da comunidade preta na construção do Brasil. Dessa forma, ficava ainda mais fácil implementar o projeto de marginalização e exclusão, para reforçar a ideia de que nossa presença foi invisível.
Se por um lado existem aqueles que querem nos apagar, por outro existem iniciativas que fazem um incrível trabalho de resgate e divulgação. O projeto Faces Negras Importam é um ótimo exemplo disso.
Com o apoio do Banco do Brasil, as imagens dessas mulheres icônicas foram recriadas, com base em dados acadêmicos, registros e depoimentos de uma equipe de pesquisadoras especializadas na vida de cada uma delas.
O Faces Negras Importam proporciona uma oportunidade de olhar, pela primeira vez, como teriam sido os rostos de Tereza de Benguela, Luiza Mahin e Maria Felipa, reforçando o sentimento de que nossos passos vêm de longe. Com os conhecimentos das intelectuais Aline Najara, Rejane Mira, Silviane Ramos, Eny Kleyde Vasconcelos e a direção de Ilka Cyana, o projeto se manteve afrocentrado e colocou grandes mulheres negras do presente resgatando a identidade de importantes mulheres negras do passado.
A iniciativa reforça, em um dos seus filmes, que "uma pessoa sem rosto não pode contar a sua história", por isso, precisamos de cada vez mais ações que unam o nosso desejo de conhecer o passado, com a importância de mostrar que a presença preta na construção do Brasil não se limita apenas à escravidão. Muito pelo contrário. Fomos guerreiros, rainhas e reis, cientistas, músicos, artistas e figuras ativas na formação da nossa cultura e história.
Não à toa o continente africano é considerado o berço da humanidade por suas contribuições em todas as ciências e áreas que influenciaram o mundo moderno. Esses mesmos conhecimentos atravessaram à força os oceanos em navios negreiros e construíram países e civilizações.
Que lembremos sempre que Faces Negras Importam, porque preto não é tudo igual.